Nem tudo que reluz é ouro
Os impactos da mineração sobre os direitos humanos
Por Pe. Dário Bossi e Danilo
Chammas[1]
No estado de Minas Gerais (Brasil) existe uma pequena comunidade, Córrego
do Feijão, recentemente ameaçada por uma nova mineradora que quer se instalar
em seu território: a “Green Metals”.
A vida cotidiana, em sua maior simplicidade (o feijão, raiz e cultura de
nosso povo) é ameaçada pelo desconhecido, estrangeiro e incompreensível,
chegando sem permissão nem consulta, muitas vezes presta-nome de grandes
corporações como a Vale S.A., que domina a região toda. Um micro exemplo do que
está acontecendo no inteiro continente latinoamericano e no resto do mundo.
A América Latina é a maior fonte de minerais metálicos no mundo. Os mais
cobiçados são ouro e prata. Para sua extração, cerca de 90% das minas são a céu
aberto e contaminam águas superficiais e subterrâneas, bem como solo e ar. O
caso do ouro é o mais paradoxal: somente 10% do extraído é utilizado em
tecnologia, 40% em joalheria e 50% serve como investimento. “Sai do subsolo de
territórios e ecossistemas vivos para acabar no subsolo de territórios
financeiros: os bancos. O capitalismo tem sede de acumulação”[2].
A obsessão por minério no mundo é crescente. Isso se deve sobretudo ao
crescimento de uma nova classe média mundial, localizada principalmente na Asia
e “inspirada” pelos modelos de consumo dos países industrializados. A previsão
é que em 20 anos os BRIICS sozinhos (Brasil, Rússia, Índia, Indonésia, China e
África do Sul) dobrarão seu consumo total de minérios metálicos (de 2,2 bilhões
de toneladas em 2002 até 4,4 previstos em 2020). Se esse for o ritmo de
extração, as reservas mundiais de minério de ferro serão exauridas em 41 anos,
de alumínio em 48 anos, de cobre e zinco respectivamente em 18 e 16 anos.
O mecanismo é perverso, pois o crescimento da demanda global, a redução das
melhores reservas minerais e a possibilidade de escassez de alguns minérios a médio
prazo estão aumentando os preços em nível mundial. Isso provocará, provavelmente,
uma rápida expansão das minas existentes e a intensificação da prospecção de
novas jazidas.
Depois da colonização e do saque de minérios e outros bens comuns para
enriquecer os cofres das metrópoles, novamente o continente acolhe o modelo
primário-exportador como solução imediata para a geração de renda líquida fácil.
A realidade se faz perversa mesmo nos países em que o pretexto para a
intensificação da extração de minérios ou hidrocarburos seja o investimento
pelo Estado em programas sociais de combate à pobreza.
O modelo econômico extrativista está baseado em profundas injustiças
ambientais: “sociedades desiguais do ponto de vista econômico e social destinam
a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa
renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos
bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”[3].
Conforme a teoria do “ecologismo dos pobres”, a maior parte dos conflitos
sociais de hoje em América Latina se deve a ameaças e impactos ecológicos: os
pobres tentam manter o controle dos recursos ambientais de que precisam para viver,
frente à ameaça de que esses passem a ser propriedade do Estado ou propriedade
privada capitalista[4].
1. As violações
A mineração não gera somente impactos pontuais nos territórios ao redor das
minas. Na maior parte dos casos, trata-se de um modelo econômico com fortes
influências sobre as decisões políticas dos Estados, portanto incide sobre
equilíbrios e destinos de inteiras sociedades. Além disso, todo grande projeto
de mineração necessita de uma maciça infraestrutura de suporte, seja para a
geração e fornecimento de energia[5],
para a acumulação de água de lavagem ou transporte do minério por minerodutos
ou para seu escoamento através de estradas, ferrovias e portos.
No Brasil, por exemplo, o trem mais longo do mundo tem 330 vagões
serpenteando ao longo de 900 Km de ferrovia em concessão à companhia Vale para exportar
o minério de ferro amazônico de Carajás até China, Japão e Europa. Uma ferrovia
do mesmo tamanho está sendo construída entre Moçambique e Malawi, pela mesma
empresa, para escoamento de carvão mineral.
No Peru, o tão contestado gasoduto de Camisea se destina principalmente a
alimentar os grandes projetos mineiros do sul do país. Mão na mão com o
famigerado projeto da mina Conga, que mobilizou milhares de pessoas em
contundentes manifestações (“Conga no va!”), caminha o projeto da hidrelétrica
de Chadin, da empreiteira brasileira Odebrecht, com uma enorme barragem que vai
prejudicar a vazão do rio Marañon, um dos maiores afluentes do Amazonas.
São muitas e diferentes as pessoas e comunidades que se consideram
atingidas por mineração! Não conseguimos detalhar todo tipo de impacto,
escolhemos os principais, que trataremos muito sinteticamente, oferecendo
alguma referência como exemplo para pesquisa.
1.1 Impactos ambientais
Os impactos mais evidentes da mineração são ambientais: desmatamento
(Carajás, Brasil), pilhas de dejetos (o lago Sandy Pond no Canadá desaparecerá
por causa do material estéril que a mineração vai descartar dentro dele),
poluição gerada por indústrias da cadeia de mineração (casos de La Oroya em
Peru e de Piquiá de Baixo ou de Santa Cruz no Brasil).
A extração de ouro é particularmente impactante: no caso do projeto mineiro
Pascua Lama (Chile-Argentina), para obter um grama de ouro seria necessário
remover 4 toneladas de rocha, consumir 380 litros de água, 1 kg de explosivo e
quase a mesma quantidade de cianuro. A energia necessária para separar 1g de
ouro seria a correspondente ao consumo semanal de uma família argentina média.
O fenômeno da drenagem ácida, devida à presença de pirita que degenera em
ácido sulfúrico, afeta o lençol freático dos territórios onde há mineração. As
consequências perduram por milhares de anos e são particularmente graves quando
as minas estão postas nas cabeceiras de bacias, sendo assim contaminadas todas
as águas da bacia.
Outro impacto se deve ao alto consumo de água: no Chile, por exemplo, as
grandes mineradoras chegam a consumir 13 metros cúbicos de água por segundo,
correspondente ao consumo médio de água por ano de mais de 6 milhões de
pessoas!
1.2 Deslocamentos forçados
Para deixar espaço aos projetos de mineração e a toda a infraestrutura a
eles conectada, em muitos casos se faz necessário expulsar famílias ou inteiras
comunidades de seus territórios.
Comunidades rurais e urbanas são despejadas e reassentadas em condições e
contextos em vários casos piores daqueles onde viviam: há o exemplo dos
reassentamentos de Cateme e 25 de Setembro em Moçambique (para deixar espaço a
minas de carvão), El Hatillo, Plan Bonito e Boquerón (Colômbia, também por
projetos de carvão) e Piquiá de Baixo (Brasil, caso raro em que é a própria
comunidade a pedir reassentamento pelo desespero das condições de poluição a
que está condenada).
Apesar da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho recomendar
que as comunidades indígenas e tradicionais devem ser consultadas sobre seu
consentimento antes da instalação de qualquer tipo de atividade produtiva em
seus territórios, o processo de consulta prévia é inexistente ou extremamente
precário e propositalmente ineficaz na maioria dos países da região[6].
As comunidades indígenas são prejudicadas pelos projetos de mineração e sua
infraestrutura, que provocam desmatamento, fuga dos animais de caça, perda de
controle dos territórios e redução de seu tamanho. É o caso, por exemplo, do
povo Shuar no Equador ou Awá-Guajá no Brasil.
1.3 Negação do futuro dos territórios e violência contra a juventude
A mineração instala verdadeiras economias
de enclave nos territórios onde pretende atuar.
Significa que a maior parte das
iniciativas se volta para a mineração, a qual se constitui como perspectiva
econômica quase exclusiva. Isso garante os interesses de algumas minorias
influentes em nível econômico e político, nacional e internacional, mas muito
raramente permite às pessoas e comunidades daqueles territórios se planejarem,
diversificarem seus investimentos, qualificarem-se para atividades
alternativas, como a agricultura familiar, a micro empresa em outros campos
produtivos etc.
As políticas de desenvolvimento
regional são definidas acima da possibilidade de participação de quem habita os
territórios, favorecem incentivos fiscais e financiamentos aos empreendimentos
ligados à mineração e boicotam outras visões e perspectivas.
Essa falta de alternativas joga a
favor das mineradoras, gerando mão de obra barata que depende cada vez mais
delas e se centraliza, geográfica e economicamente, em volta das minas ou suas
infraestruturas, vinculando-se permanentemente a elas.
Essas migrações desmedidas rumo a
modernos “Eldorados” em contextos de miséria e omissão do Estado geram a
impressão de um falso desenvolvimento. Trata-se, ao contrário, de um
crescimento descontrolado que provoca caos e violência.
Marabá e Parauapebas, por exemplo,
são cidades do Estado do Pará (Brasil) mais próximas à maior mina de ferro do
mundo, Carajás. Estão também entre as cidades mais violentas do Brasil: a
probabilidade de um jovem ser morto nessas cidades, vítima de disparos de arma
de fogo ou por facadas, é 25% maior do que no Iraque, país com uma das mais
altas taxas de morte por conflito armado.
1.4 Criminalização
dos atores sociais
Quem critica os
grandes empreendimentos mineiros é exposto à perseguição judiciária, ameaças,
calúnias, espionagem, assassinato. O banco de dados sobre conflitos mineiros em América Latina[7]
apresenta com detalhes 198 casos de conflitos ainda abertos no continente,
afetando 297 comunidades.
O ataque aos movimentos sociais e
às comunidades é escancarado e público. Em 2010, o então presidente do Peru
Alan García qualificou os ambientalistas e defensores dos direitos dos
indígenas como inimigos do desenvolvimento, afirmando que estes padeciam da
síndrome do “perro de hortelano”. Entre os governos ditos progressistas, passa
algo similar. O presidente do Equador Rafael Correa, em 2007, disse: “Acabou o
anarquismo. Todos os que se opõem ao progresso do País são terroristas. Todos
os que farão manifestações com bloqueios nas estradas serão sancionados com
todo o rigor da lei. Não são as comunidades que protestam, mas um pequeno grupo
de terroristas, os ambientalistas românticos e os ecologistas infantis são
aqueles que querem desestabilizar o governo”.
Em muitos casos, se põe
estrategicamente um falso dilema entre o interesse coletivo e a defesa dos
direitos humanos e da natureza.
Recentemente, militantes de
movimentos sociais que no Brasil se opõem a grandes projetos de mineração foram
espionados e agentes secretos das forças públicas e privadas de segurança infiltraram-se
nas coordenações desses movimentos.
Da espionagem à perseguição e à
violência física o passo é curto. Lembremos aqui somente alguns dos massacres
mais graves, como o de Bágua (Peru, 2009, com dezenas de indígenas
desaparecidos e 28 policiais assassinados), da ponte rodoferroviária de Marabá
(Brasil, 1987, com a morte de vários garimpeiros) e de Eldorado dos Carajás
(Brasil, 1996, realizado pela Polícia Militar Brasileira e aparentemente apoiado
pela mineradora Vale S.A., com a morte de 21 trabalhadores rurais sem terra).
1.5 Violência contra a mulher
Raramente se percebe o tamanho do impacto dos empreendimentos mineiros
contra as mulheres. A mineração em grande escala é uma violência também de
gênero.
Os impactos descritos anteriormente recaem em grande parte prioritariamente
e de maneira mais intensa sobre a vida das mulheres. Em muitos casos, elas
sofreram o assassinato ou afastamento de seus maridos e são ameaçadas, em
seguida, para que vendam suas terras às empresas mineiras.
Intensificou-se a agressão física e o aumento da exploração sexual nas
áreas de mineração ou de instalação de grandes projetos.
O despojo das terras de famílias ou inteiras comunidades é uma violência sobretudo
contra a mulher, que em muitos casos é a responsável pela saúde e a segurança
alimentar da casa. Os grandes projetos tendem (em muitos casos propositalmente)
a desmanchar o tecido social das comunidades; perde-se um entorno de proteção e
segurança, bem como a possibilidade de participação. Também nesse caso, as
principais vítimas são as mulheres.
2. As resistências
Não podemos falar só
de conflitos, existe também vitalidade, criatividade e firmeza na resistência e
nas alternativas propostas pelas comunidades.
Os mais importantes
referentes no âmbito da resistência em nível regional são o Observatorio de
Conflictos Mineros em America Latina (OCMAL), o Movimiento Mesoamericano contra
el Modelo extractivo Minero (M4), a Articulação Internacional dos Atingidos
pela Vale, a recém criada rede de religiosas/os e leigas/os em luta contra a
mineração no continente.
Não há espaço para
aprofundar, queremos somente citar três eixos de ação que se complementam.
- Não à mineração:
protestos contra grandes projetos, ainda não instalados, de mineração e
infraestruturas; bloqueios, manifestações, ações judiciais para ver reconhecida
a ilegalidade dos empreendimentos, lutas por leis que proíbam a mineração
contaminante ou descontrolada, campanhas internacionais (por ex: “El água vale
más que el oro”, que recebeu também o apoio de Papa Francisco);
- Garantia de
direitos (onde já há instalações consolidadas): apelo às instituições para
a defesa dos direitos coletivos, luta por mitigação e pela reparação integral
dos direitos violados, tentativas de retardar a expansão dos projetos e
conjugar a mineração com outras atividades socioeconômicas e seus ritmos;
- Pós-extrativismo:
debate e ações de longo prazo para promover um novo modelo de vida e uma nova
economia nas regiões e nos países mineradores.
A questão, em todos
esses espaços de resistência, não é se somos contra ou a favor da mineração.
É que um dia bem
próximo deveremos saber viver sem
mineração, porque os recursos estarão esgotados. O que fazer, então? Esperar
até aquele dia para resolver o problema, ou transformarmos rápida e
radicalmente o modelo extrativista de nosso continente?
|
[1] www.justicanostrilhos.org ; uma
versão resumida desse artigo foi publicada pela Agenda Latinoamericana 2015.
[2] Sursiendo, "Repensar el uso de metales frente al modelo
extractivista", em www.conflictosmineros.org
[5] A indústria de beneficiamento dos minerais metálicos consome mediamente
mais energia que todas as residências do mesmo país - no Brasil a proporção é
27 milhões de tep (toneladas equivalentes de petróleo) vs 23 milhões.
[6] O mencionado direito de consulta prévia,
também chamado de consentimento livre, prévio e informado (CLPI), tem sido
reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. No âmbito
nacional, tem sido freqüentemente aplicado pela Corte Constitucional da
Colômbia e a Corte Suprema da Bolívia.