Primeiro
foi a heroína, agora Pornô. Se em Trainspotting Irvine Welsh operou com os
psicoativos a trama de seu instigante romance, a crítica da sociedade burguesa
toma a forma agora de crítica da pornografia.
Estão
de volta Francis “Franco” Begbie, Daniel “Spud” Murphy, Mark Renton e Sick Boy
– mais conhecido agora como Simon David Williamson, sem dúvida o principal
personagem desse romance. Begbie continua o mesmo psicopata inveterado em sua
missão de matar Mark Renton – proprietário de um clube em Amsterdã; Spud
continua scruffy (esfarrapado); e é
de Simon Williamson a ideia de fazer um filme pornô intitulado “Sete ninfas para sente irmãos”. Ah! E
temos agora a companhia de Nikki, uma estudante luxuriosa...
Mas
o que haveria ocorrido para que houvesse a substituição dos psicoativos pela
pornografia? Spud diz que “ficar sem drogas, pra mim, significa ficar sem
autoconfiança” (p.174). Renton aponta:
As drogas eram a
opção mais fácil. E logo começaram a cobrar seu preço, a corroer os sonhos que
antes cultivavam, alimentavam e fortificavam, fazendo desmoronar a vida à qual
nos tinham permitido o acesso. E tudo começou a ficar parecido demais com um
trabalho pesado qualquer, e trabalho pesado era algo que nós dois [Sick Boy e
Renton] fazíamos de tudo para evitar (p.428).
Sick
Boy, por sua vez:
Cocaína me entendia,
entendia todos nós. Somos um bando de viados com o saco cheio, envolvidos com
uma rotina que odiamos, em uma cidade que odiamos, fingindo estar no centro do
universo, nos detonando com drogas de quinta categoria pra destruir essa
sensação de que a vida real está acontecendo em outro lugar, conscientes de que
tamos apenas alimentando a paranoia e o desencanto, mas ainda assim apáticos
demais pra conseguirmos parar (p.15).
Vocalizando
Spud, Renton e Sick Boy, Welsh captura uma determinação da bürgerliche Gesellschaft: o tédio. Causado pela repetição
monótona, pela rotina odienta na qual o estímulo criador é destruído
cotidianamente em cidades misantropas – espaços urbanos anti-antropocêntricos,
diríamos – é de tal magnitude que nem mesmo o estimulante-anestésico famoso é
capaz de contrarrestar. A “vida real” acontece em “outro lugar”, em outros
espaços que não sejam aqueles em que “uma viagem de trem, que antes levava
quatro horas e meia, agora leva sete” (p.60). E Simon prossegue em sua crítica
ao progresso e modernização burgueses: “E a porra do preço sobe em relação
direta com o aumento da duração da viagem” (idem). Se substituirmos os trens
pelos automóveis, parecerá que Sick Boy está falando de Los Angeles, ou até
mesmo São Paulo! De qualquer forma, esses momentos inelimináveis dos espaços
urbanos anti-antropocêntricos, como ousei conceituar, fazem parte desse
movimento mais amplo da vida burguesa: uma “longa
tentativa-de-suicídio-em-prestações” (p.109).
A
crítica ao individualismo burguês também não escapa à pena do escritor escocês.
Dando voz à Sick Boy:
Renton. Quem é ele? O
que ele é? É um traidor, um delator, um viado, um aproveitador, um egoísta
interesseiro, ele é tudo que um indivíduo da classe trabalhadora precisa ser
para se dar bem na nova ordem capitalista global. [...] Invejo pra caralho esse
canalha porque ele realmente não dá a mínima pra ninguém a não ser ele mesmo
(p.204)
Quem
leu Trainspotting, ou ainda assistiu
ao filme homônimo de Danny Boyle, sabe que Mark roubou 16 mil libras de seus
comparsas. Por isso a acusação de traidor impetrada por Simon. Welsh também
deseja criticar isso: Renton é o espírito burguês em pessoa, o “egoísta
interesseiro” que “não dá a mínima pra ninguém a não ser ele mesmo”. Welsh apreendeu
uma determinação que Hobbes, anteriormente, havia apreendido: na sociedade
burguesa “o homem é o lobo do próprio homem”. Aos olhos de Sick Boy, mas também
de Begbie, Renton é mesquinho e egoísta – duas característica do ser burguês, mas
não do ser humano.
Em
uma passagem inolvidável, pela voz de Simon, Welsh escreve:
As pessoas querem
sexo, violência, comida, animais de estimação, lazer utilitário e humilhação.
Vamos dar tudo que pedem. Pensa na humilhação em programas de televisão, nos
jornais e revistas, olha o sistema de classes, o ciúme, a amargura que transborda
em nossa cultura: na Grã-Bretanha, queremos ver as pessoas se fuderem (p.215).
Olhando
por esse prisma, a pornografia faz todo sentido existencial numa sociedade
vilipendiada pela luta de classes, na qual amor é propriedade e não relação. Sexo
(pornografia), violência e humilhação se imiscuem na sociedade que impera o
modo burguês de produção. Eros é fetichizado, o ser humano humilhado e
violentado – numa palavra, fudido.
Mesmo
a questão das expectativas sociais foram traduzidas com perfeição. Em uma
conversa com Curtis – um dos “irmãos” para as sete ninfas – Sick Boy questiona-o: “quem é que vai ter casa
bacana, o emprego, a empresa, o dinheiro, o carro e quem é que vai tá preso
numa favela dependendo do seguro-desemprego?” (p.394). Simon pergunta a Curtis
por que essa desigualdade e este responde “– Porque eles tiveram a educação e
tal?”. Simon concorda, mas sabe que a resposta integral é a dele:
– Expectativa. Eles
vão ter essas coisas porque esperam ter ela. Como podiam esperar qualquer outra
coisa? Pessoas como eu e você não esperam coisas desse tipo. Sabemos que
precisamos penar pra caralho pra conseguir isso. Agora, pra mim, um homem
hipereducado porém subqualificado, não faz muito sentido entrar numa vida desse
tipo (p.395).
Welsh
sabe que as expectativas são condicionadas pela sociedade e sua relação
contraditória com o indivíduo. Ou seja, as probabilidades de ocorrer algo –
como no caso de Simon e Curtis – são sócio-individuais. O futuro que se
vislumbra na sociedade burguesa, e atinge mesmo indivíduos não-burgueses, não
remete a um progresso. Melhor dizendo – para não eliminar a contradição – esse
progresso futuro está sendo dinamizado por contrafações. Daí os
fingimentos sociais, a inautenticidade do indivíduo, a fraude erótica, a
fetichização do amor – da relação à propriedade. “O conteúdo costumava ser o
que importava [...]. Agora tudo é farsa” (p.438), sentencia a luxuriosa Nikki.
Ou ainda Daniel Murphy: “Cigarros, álcool, heroína, cocaína, anfetamina,
pobreza e lavagem cerebral midiática: as armas de destruição do capitalismo são
mais sutis e eficazes que as do nazismo, e diante delas Spud é impotente”
(p.449).
Também
os psicoativos, perceberá Renton, foram aprisionados pelo capitalismo: “É
ingênuo esperar que as drogas fiquem imunes às leis do capitalismo consumista
moderno. Principalmente por serem elas os produtos que o definem melhor”
(p.477). O “capitalismo consumista moderno” será, ainda, objeto de crítica de
Sick Boy:
MAS QUE MONTE DE
MERDA, PORRA! Não precisamos de peitos e bundas porque eles precisam estar à
nossa disposição; pra serem apalpados, penetrados, pra inspirarem nossas
punhetas. Por que somos homens? Não. Porque somos consumidores. Porque gostamos
dessas coisas, coisas que achamos ou que formos induzidos a acreditar que nos
trarão mérito, liberação, satisfação. Damos valor a elas, portanto necessitamos
pelo menos da ilusão de sua disponibilidade. Porque peito e bunda são como
Coca-Cola, cereais matinais, lanchas, carros, casas, computadores, grifes,
camisetas estampadas. É por isso que a publicidade e a pornografia são
similares; elas vendem a ilusão da disponibilidade e o consumo sem
consequências (p.524-525).
Consumidores,
cidadãos não. A publicidade induz a acreditar que tendo carros, máquinas de
lavar, hipotecas a juros fixos, dentre outras coisas, nos tornaremos livres e
satisfeitos. Contudo, a sociedade burguesa drena essas satisfações e liberações
parciais/relativas. Somos embalados no sonho da mercadoria mais próxima,
disponível e passível de ser consumida.
Pornô(grafia) é sobre tudo isso...