por Iara Moura, Pacs
Quase 3.000 quilômetros separam as comunidades de Piquiá de Baixo e
Santa Cruz. A primeira, bairro da zona rural de Açailândia, cidade do interior do
Maranhão, onde vivem cerca de 300 famílias. A segunda, limite urbano do
município do Rio de Janeiro, última estação do trem que sai da Central do
Brasil, onde vivem aproximadamente 220 mil pessoas segundo o censo de 2010.
Aqui e lá, apesar da distância geográfica, histórias parecidas de quem convive
com os impactos do modelo de desenvolvimento em curso no Brasil. Ambas as
comunidades sofrem diariamente com a poluição e a interrupção dos seus modos de
vida ocasionados pela instalação de vizinhos incômodos: grandes siderúrgicas
que chegaram, se abancaram e hoje disputam espaço com quem ali nasceu e
cresceu.
Em Piquiá de Baixo, instalou-se, no fim da década de 1980, 5 empresas
siderúrgicas: Viena Siderúrgica S/A, Gusa Nordeste S/A, Ferro Gusa do Maranhão
(Fergumar), Cia. Siderúrgica Vale do Pindaré e Siderúrgica do Maranhão S/A
(Simasa). A cidade é rota por onde passa todo o minério de ferro extraído das
minas de Carajás, exploradas pela Vale, em Parauapebas (PA). O minério passa
pela estrada de ferro até o porto de Itaqui, em São Luís. Com extração de 120
milhões de toneladas/ano, com previsão de duplicar esse valor até 2018, a Vale
é a maior companhia do mundo no setor. A situação dos moradores de Piquiá e os
impactos na saúde e na qualidade de vida já foram assunto de denúncia do Estado
brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Atualmente, os moradores aguardam o reassentamento das famílias para uma
área distante da contaminação tão direta. “A luta foi grande. Pode parecer uma
derrota a gente estar saindo do lugar que a gente mora, mas decidimos juntos
que não dava mais. O reassentamento coletivo, num bairro planejado por nós
moradores, é uma das vitórias de nossa luta”, explica Joselma Alves,
professora, da Associação de Moradores de Piquiá de Baixo.
Em Santa Cruz, o parque industrial também se avolumou nos anos 1980 e
veio atingir seu ápice com a chegada da TKCSA em 2007 e de outros
empreendimentos nos arredores da Baía de Sepetiba. O bairro demarca o limite do
Rio de Janeiro com o município de Itaguaí e foi outrora zona de produção
agrícola e atividade pesqueira. Atualmente, os pescadores estão impedidos de
trabalhar há quase um ano desde a construção de uma barragem no canal do São
Francisco e a agricultura familiar e de subsistência também está estagnada por
conta da poluição.
A TKCSA funciona desde sua instalação sem licença de operação. Em abril
deste ano, a empresa recebeu Autorização Ambiental de Funcionamento e um
terceiro termo aditivo ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Por meio dos
documentos, a Secretaria do Ambiente e o Inea permitem que a siderúrgica siga
funcionando às margens da legislação ambiental.
Aqui e lá, as sombras das árvores deram espaço ao asfalto por onde
passam ônibus que levam e trazem funcionários das empresas ou caminhões e trens
que transportam minérios, ferro fundido e cimento. A chuva fininha do fim de
inverno, agora é prateada em Santa Cruz. A luz alaranjada do fim de tarde deu
lugar à neblina espessa, cor de terra, em Piquiá. Nas duas localidades, o curso
dos rios e das pessoas foram alterados à medida que avançava o poder do
minério. Não por escolha de quem já estava ali, mas pela imposição do modelo
econômico centrado na exploração de commodities minerais. Palavra comum nos
noticiários que passou a compor também o vocabulário dos moradores de ambas as
regiões.
Nos últimos dias 15 e 16 de abril, moradores e moradoras de Piquiá e de
Santa Cruz participaram da oficina Vigilância Popular em Saúde para as
comunidades impactadas pela Siderurgia organizada pela Rede Justiça
nos Trilhos e pelo Pacs. Durante os dois dias, trocaram experiências sobre os
impactos da siderurgia em suas vidas e os problemas de saúde resultantes da
poluição ambiental.
O grupo que veio de Piquiá hospedou-se nas casas dos de Santa Cruz.
Segundo padre Dário Bossi, missionário comboniano, da Rede Justiça nos Trilhos,
não é a primeira vez que o intercâmbio acontece. Em 2014, os moradores de Santa
Cruz visitaram Piquiá.
“Esse intercâmbio tem uma historia, é o terceiro encontro que estamos
realizando e tem um valor enorme pra nós por diversas razões. Primeiro o valor
humano, pessoal e humanitário, de fortalecer a luta. Tem um valor espiritual,
místico: mostrar por que lutamos. Por que vale a pena resistir. Por que vale a
pena sonhar algo diferente daquilo que nos é imposto”, explica.
Para Kelly Silva, a oficina marcou a primeira visita ao Rio de Janeiro e
a descoberta de paisagens e histórias para além da tão televisionada Zona Sul.
“Quando eu desci da van e me deparei com a empresa (TKCSA), falei
pra minha colega: ‘nossa! Tô me sentindo em Piquiá de Baixo’. O sofrimento dos
moradores é o mesmo. Quando você vai ouvir as histórias são as mesmas…
Irritação nos olhos, pigarro na garganta, as crianças com alergia”, conta.A
estudante de 26 anos não lembra a última vez que conseguiu assistir TV ou
conversar com uma amiga sem ter de fazer um esforço enorme para ouvir e ser
ouvida. A poluição sonora causada pelas indústrias e pela passagem dos trens e
caminhões carregados de minério é apenas um dos transtornos. A emissão de
particulado na atmosfera vem causando a multiplicação de doenças respiratórias,
oftalmológicas e dermatológicas. Segundo Kelly, o posto que atende a comunidade
só conta com um clínico geral, não tem especialistas.
Além disso, os profissionais de saúde não fornecem laudo causal entre a
poluição atmosférica e as queixas dos pacientes:
“Aconteceu com meu sobrinho. Ele acordou e começou a ficar todo empolado
(cheio de bolhas); A gente levou no hospital, chegou lá, o médico olhou
e perguntou: você é de onde? E minha irmã: ‘de Piquiá de Baixo’. ‘Então tá
explicado, lá está tendo uma epidemia relacionada à poluição’. Duas semanas
depois, a filha de uma amiga minha teve a mesma coisa e o médico já não
confirmou o diagnóstico”, explicou.
Aliane Silva, 16, moradora de Santa Cruz, que recebeu algumas pessoas de
Piquiá em sua casa, expôs queixas semelhantes.
“Eu sofro com alergia, antes eu não tinha isso. Agora a minha pele tá
muito frágil. Fico com umas bolinhas na pele e se eu coçar piora. A Joselma me
informou que isso foi uma das reações que ela também teve no início lá em
Piquiá e agora ela tem outras coisas mais graves. Se continuar desse jeito como
vai ficar aqui em Santa Cruz?”, questionou.
TKCSA,
em Santa Cruz (RJ), apontada como causa do aumento em 78% da emissão de CO2 no
Rio de Janeiro / Foto: arquivo Pacs
Em Santa Cruz, a raposa toma conta do
galinheiro
Desde 2007, a TKCSA funciona em Santa Cruz sem licença ambiental. Nos
primeiros anos de operação, o escândalo da chamada Chuva de Prata — lançamento
de particulado poluente na atmosfera — obrigou o órgão ambiental e a empresa a
tomarem alguma medida com relação à saúde ambiental e dos moradores do entorno
da siderúrgica. Acusada de aumentar em 76% a emissão de CO2 no Rio de Janeiro,
a empresa negou as acusações na imprensa e se comprometeu a instalar um
poderoso filtro. Além disso, técnicos do Inea passaram a monitorar o dia a dia
da fábrica por meio de câmeras que oferecem imagens ao vivo do interior da
companhia.
Os moradores do entorno, principalmente das proximidades da Reta João
XXIII, relatam que não houve mudança substancial. “O que aconteceu é que o pó
ficou mais fino. Fica mais difícil da gente ver, mas ele ainda cai todos os
dias e entra nos nossos pulmões”, conta o pescador Jaci do Nascimento. Em busca
de cumprir os requisitos do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a empresa
prontificou-se ela mesma a fazer o monitoramento da qualidade do ar. O próprio
empreendimento fiscaliza sua conduta. Situação parecida ocorre em Piquiá.
“Quando vem a fiscalização ambiental é até engraçado. Os funcionários tudo
correndo pra esconder as irregularidades”, lembra Kelly Silva.
O relatório “Análise atualizada dos problemas socioambientais e de saúde decorrentes
da instalação e operação da empresa TKCSA”, da Fiocruz, indica a
existência de riscos não devidamente analisados no processo de licenciamento
ambiental da TKCSA, relacionados ao ruído provocado pelo tráfego de trens e
caminhões, aos efluentes líquidos, aos resíduos sólidos e, principalmente, às
emissões atmosféricas. Emrecomendação feita pelo Ministério Público do Estado do
Rio de Janeiro, pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública do
Estado do Rio, os órgãos orientam que a Comissão Estadual de Controle Ambiental
(CECA) e o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) não concedam Licença de
Operação (LO) à usina siderúrgica da Thyssenkrupp Companhia Siderúrgica do
Atlântico (TKCSA), a não ser por meio de regular processo de licenciamento
ambiental.
Diante desta situação, os/as participantes da oficina acordaram de
iniciar uma experiência conjunta de autoproteção da saúde das comunidades, de
ir monitorando a qualidade do ar, da água e do solo e trocarem dados sobre isso.
“Quem vai contar essa história?”
A terra onde a gente pisa e que guarda a memória dos que vieram antes de
nós, a quem pertence? Quem traça os limites dos mapas? Quem escreve os nomes
das ruas? Quem contará nossa história quando já não estivermos aqui? Como essa
história será contada? No calor de Santa Cruz, entre mulheres e homens,
pescadores, marisqueiras, alguns estudantes, pesquisadores, outros com pouca
intimidade com as letras escritas, grandes mapas colados nas paredes foram
ganhando sentido para além do papel. “Essa área aí onde tá a TKCSA era tudo
mangue”. “Quando eu era criança, aqui era cheio de chácaras. Eu plantava mamão,
coco, agora, as folhas ficam tudo queimada por conta da poluição”. “Aqui era a
área de reprodução dos peixes, mas desde que começou o bate-estaca eles
fugiram”.
Durante a oficina, os participantes foram convidados a localizar em dois
grandes mapas, de Piquiá e de Santa Cruz, lugares, percursos e histórias
relacionados aos respectivos bairros. Indicar onde a vida cotidiana se
desenrola no mapa é o objetivo central da chamada cartografia social. Segundo
Gabriel Strautman, do Pacs, a metodologia é importante porque permite a
visualização dos conflitos socioambientais, que, atualmente estão muito
atrelados ao território. A escolha das áreas de instalação de indústrias
pesadas, siderúrgicas, petrolíferas, não se dá ao acaso. Essas atividades
requerem o uso de muitos recursos naturais, sobretudo a água, e têm alto
impacto sobre a realidade do seu entorno. Daí a escolha por se instalar em
áreas onde vivem comunidades tradicionais, pescadores, quilombolas, indígenas e
periferias das grandes cidades. Veja mais no infográfico abaixo Mineração:
compartilhando medo, capturando valores:
“A ocupação do território pelas siderúrgicas vem significando de certa
maneira a expulsão das comunidades ou pelo menos a transformação dos modos de
vida dessas. É comum os mapas mostrarem que o acesso a recursos básicos e
essenciais como as fontes de água ficam comprometidas com a presença das
siderúrgicas porque elas poluem o meio ambiente do seu entorno”, explica
Gabriel.
Joana Barros, da Fase, também destaca a importância do método para dar
visibilidade às estratégias de resistência e à criação de alternativas pelas
comunidades impactadas: “Essa ferramenta permite também que as resistências, as
lutas e os modos de vida que existem nesses territórios possam ser
visibilizados. Por que na medida em que as comunidades olham pros seus lugares,
narram suas histórias e se colocam nesse lugar identificando onde nasceu, onde
trabalha, que rio que mudou o seu curso, também se apropriam de maneira muito
mais forte da sua própria história, da sua própria vida”, defende.
Na construção da cartografia, assinalando com desenhos, letras ou
símbolos os espaços de relevância para a história coletiva e de cada um, os
moradores de Piquiá de Baixo e de Santa Cruz assinalavam também estratégias e
sonhos que estão construindo aqui e lá. Se para Piquiá, a saída encontrada foi
o reassentamento, em Santa Cruz, pescadores e moradores seguem lutando por
reparação, justiça e por um futuro possível no território onde hoje vivem.
Tramitam na Defensoria Pública do Estado 238 ações contra a TKCSA seja por
prejuízos causados por inundações, adoecimento ou interrupção da pesca.
Participantes
da Oficina Vigilância Popular em Saúde para as comunidades impactadas pela
Siderurgia, 15 e 16 de abril de 2016, Santa Cruz, Rio de Janeiro.
A Rede Justiça nos
Trilhos é uma coalizão de comunidades atingidas por mineração e
siderurgia ao longo do Corredor de Carajás, nos estados de Pará e Maranhão,
assessoradas por entidades de defesa dos direitos humanos, pastorais e movimentos
sociais, sindicatos e grupos de pesquisa universitária.
O Pacs — Instituto Políticas
Alternativas para o Cone Sul é uma organização da sociedade civil com sede no
Rio de Janeiro que completa 30 anos em 2016. O instituto atua junto a
comunidades, movimentos sociais e redes produzindo conhecimento crítico sobre o
modelo de desenvolvimento vigente e construindo projetos alternativos à
organização socioeconômica que vivenciamos, focada na produção de capital e na
perpetuação de injustiças sociais