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Homem simples e comum: procuro ser gentil com as pessoas, amigo dos meus amigos e bondoso com a minha família. Sou apaixonado por filmes, internet, livros, futebol e música. Estou tentando sempre equilibrar corpo e mente, manter-me informado das notícias a nível mundial, ministrar aulas de geografia em paralelo às pesquisas acadêmicas que desenvolvo e, no meio de tudo isso, tento achar tempo para o lazer e o namoro. Profissionalmente,sou geógrafo e professor de Geografia no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Maranhão (IFMA ­ Campus Avançado Porto Franco) e Doutorando em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e do Núcleo de Estudos do Pensamento Socialista Pesquisa do Sindicalismo (NEPS), ambos da UFMA. Participo da Rede Justiça nos Trilhos.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

David Harvey: “Vivemos no mundo da servidão por dívidas”


Ao longo do último ano, experimentamos todos uma sensação de vertigem política. Parte disso, claro, decorre do fato de o atual presidente dos Estados Unidos ser Donald Trump — e de ele estar constantemente encadeando um absurdo no outro, normalmente quando a gente mal começa a debater sobre o primeiro.
Estamos correndo o tempo todo, e fica difícil tomar pé de onde estamos e onde estivemos. Poder parar e olhar para as coisas de uma perspectiva mais ampla se torna um luxo quase inacessível. Isso terá sérias consequências. Estamos sofrendo alterações em nossos cérebros, na forma como processamos as notícias e as informações, nos nossos conceitos de resistência e tirania. Já vivemos em uma sociedade que não estuda sua própria história — a história nua e crua –, e muitas vezes os acontecimentos em curso são analisados num vácuo que raramente inclui o contexto histórico necessário para compreender o que é novidade, o que é antigo e como chegamos até aqui.
Nós nos alienamos da nossa realidade e do nosso trabalho.
No momento em que Trump comemora seu primeiro ano de mandato em meio a manifestações contrárias a seu governo em várias partes dos EUA, o acadêmico marxista David Harvey aceitou o convite para uma entrevista para o podcast Intercepted, de The Intercept. Harvey é um dos principais pensadores marxistas da atualidade, uma autoridade na principal obra de Marx, “O Capital”, que completou 150 anos no fim de 2017. Ele é professor benemérito de Antropologia e Geografia na City University de Nova York e um pioneiro da geografia moderna. Acaba de lançar o livro “Marx, Capital and the Madness of Economic Reason” [“Marx, Capital e a Loucura da Razão Econômica”, ainda sem tradução no Brasil].
Abaixo, o áudio completo em inglês e uma versão traduzida e editada da conversa.
Assine o podcast Intercepted [em inglês] nas plataformas Apple PodcastsGoogle PlayStitcherRadio Public, e outras.

Jeremy Scahill: Professor, bem-vindo ao Intercepted.
David Harvey: Obrigado.
JS: Para começar, fiquei curioso depois de ler seu livro: como chegamos a Trump? Quais fatores levaram à ascensão de Trump à Casa Branca?
DH: Eu resumiria em uma palavra: alienação. Uma população cada vez mais alienada. Alienada do processo de trabalho, porque não há muitos trabalhos com propósito e significado por aí. Prometeram a esses trabalhadores uma espécie de cornucópia do consumo, um espaço no qual encontram muitos produtos, mas que não funcionam bem, e acabam tendo que comprar um telefone novo a cada dois anos. Um estilo de vida é imposto e, sabe, essas pessoas estão desiludidas. E claro que também estão desiludidas com o processo político; eles percebem que quem tem o dinheiro compra o que quiser.
Populações alienadas não necessariamente se comportam de uma forma que faça sentido para alguém como eu. Eles não se voltam para a esquerda, por exemplo. Dizem simplesmente: “Quero uma coisa que pareça diferente”. E acho que quando Trump veio e disse “eu vou ser a voz de vocês”, foi aí que ele levou a melhor sobre Hillary Clinton. E acho que é a mesma coisa que você encontra na votação do Brexit na Grã-Bretanha, onde as áreas metropolitanas estão indo bem, mas você encontra populações alienadas nas cidadezinhas onde a base econômica da vida simplesmente desapareceu.
E aí você vê irromper um pessoal neofascista, populista e de direita que chega e diz: “Ouça o que eu digo, ouça o que eu digo, eu tenho uma resposta diferente para todas essas perguntas”. E acho que esse tipo de coisa está acontecendo não só nos Estados Unidos, mas em vários outros lugares.
JS: Baseado nos atos de Trump enquanto presidente e nas ideias que apresenta em seus discursos ou no Twitter, você considera que ele tem alguma ideologia?
DH: Acho que ele tem algumas ideias, estejam ou não reunidas em uma ideologia. Uma das suas ideias, por exemplo, é desmanchar tudo que Obama fez. Isso é quase instintivo para ele: fazer tudo na direção exatamente oposta. Então dá pra dizer que ele tem ideias.
Agora, uma ideologia? Não acho que ele tenha uma ideologia clara. Mas ele com certeza constrói um personagem: tudo gira em torno de mim, mim, mim. O narcisismo é óbvio, o que me parece um traço clássico de líderes populistas.
JS: É o que muitos observadores chamam de populismo à la Trump. Tem muitos mantras que ele repete, e seu favorito para falar de seu sucesso à frente da presidência é que a bolsa de valores continua batendo recordes, e os investimentos dos planos de previdência privada estão estourando. O que ele não diz é que a maior parte dos trabalhadores do país não tem aposentadoria e não participa dos planos de previdência. Como você explica que está acontecendo agora com Wall Street e o mercado de ações? A bolsa está mesmo batendo recordes.
DH: O que me parece é que, desde os problemas de 2007 e 2008, temos visto bancos centrais colocando mais dinheiro no mercado. Esse dinheiro precisa ir para algum lugar, e vai principalmente para o mercado de ações, e, claro, para o bolso do 1% mais rico. Então, se você olhar para os índices de desigualdade desde 2007-2008, vai ver que eles aumentaram vertiginosamente, não apenas nos EUA mas em todo o mundo.
De certa forma, o que acontece é que nos deparamos com dificuldades em 2007-2008, e a resposta foi injetar mais dinheiro, o que foi ótimo para o mercado de ações e o resto do mercado financeiro. Mas, como sabemos, a renda das pessoas comuns não melhorou em nada, a situação delas não melhorou. Os benefícios das pequenas recuperações desde 2007-2008 não atingiram ninguém além do 1%. É a solução dos investidores para o problema econômico. E os últimos benefícios tributários foram sob medida para os investidores.
O que acontece nos Estados Unidos é que os investidores estão criando uma economia boa para eles mesmos.
JS: Se alguém de outro universo chegasse aqui e perguntasse a você: “De onde vem o dinheiro que paga os salários dos trabalhadores, ou que existe no mercado de ações, ou que sai das mãos do ‘povo’ para empresas como a Amazon?”
DH: Bem, o dólar deveria valer o que pode comprar, que são os bens de consumo que a gente quer. E o que a gente quer são bens de consumo úteis. O problema disso é que o capitalismo é muito bom em fabricar bens de consumo que não funcionam, ou que estragam, ou que só duram dois anos. Eu costumo usar esse exemplo: ainda estou usando os garfos e as facas que foram da minha avó. Se o capital produzisse coisas que duram cem anos, o que aconteceria? Em vez disso, se produz computadores que não funcionam se tiverem mais de três ou quatro anos de uso.
Gostaríamos de pensar que o capitalismo é um sistema racional, mas não é. É irracional, ele insere essas irracionalidades porque é a única forma de continuar se reproduzindo. E acho que as pessoas estão começando a ver que essa não é exatamente a vida boa que elas achavam que teriam em algum momento, em especial para a massa da população que hoje está endividada e precisa pagar essa dívida, seja ela de cartão de crédito, de hipoteca, de crediário. É nesse mundo que estamos vivendo.
Vivemos no mundo da servidão por dívida, em que o futuro da maior parte da população está tomado pela maneira como estão atadas ao capitalismo. Sabe como é aquele papo para ter uma vida confortável: tome dinheiro emprestado e tudo ficará bem.
JS: E o papel da Amazon, do Google, do Facebook em nossas vidas? Isso é novidade na evolução ou na degeneração do capitalismo?
DH: Não acho que seja novo. Vamos considerar de uma perspectiva histórica: estamos vivendo isso desde os anos 1970, com o que chamamos de desindustrialização, a perda dos trabalhos industriais, do setor manufatureiro. O resultado foi que os sindicatos, que eram muito fortes… Tudo se perdeu.
Então, a desindustrialização do setor manufatureiro foi um fator importante. Agora estamos vendo a mesma coisa acontecer no varejo e no marketing. Vemos isso com o Wal-Mart, com a Amazon, com as compras online. E vamos ver acontecer no setor de varejo a mesma coisa que aconteceu no setor manufatureiro, e acho que isso vai ter um grande impacto sobre a economia norte-americana.
JS: Qual é a sua crítica ou o seu problema com a ideia de que a concorrência possibilita não só aos consumidores, mas também aos Estados, um produto de maior qualidade?
DH: Em primeiro lugar, gostaria de perguntar: que concorrência? Temos monopólios demais. Vejo isso na área de energia, na área farmacêutica, vejo isso em toda parte, um monte de monopólio em tudo quanto é lugar. Então, a concorrência é, na verdade, uma espécie de falsa concorrência.
E internacionalmente, claro, sempre há algum nível de concorrência entre diferentes Estados — mas veja o que ela faz.  Basicamente, o que se espera é que você crie um bom ambiente de negócios. É isso que se espera do estado. E quanto melhor o ambiente de negócios, mais capital será atraído para ele. Isso significa menos tributos. Então, na verdade, você tem que dar dinheiro para as empresas. E é impressionante, o capital corporativo não parece capaz de sobreviver atualmente sem subsídios do setor público.
Assim, no fim das contas, esse setor público está permanentemente sustentando as grandes empresas, e elas não estão realmente concorrendo. Estão simplesmente usando o poder de seu monopólio para reunir uma grande quantidade de riqueza em poucas mãos.
JS: No que se refere à política eleitoral nos EUA, houve um debate bem feroz dentro da esquerda norte-americana sobre as eleições de 2016. E acho que uma porção significativa, mesmo da esquerda, no fim das contas, tapou o nariz e votou na Hillary Clinton como forma de votar contra Donald Trump. Onde você se coloca em relação a essas questões?
DH: Bem, acho que eu me coloco dizendo: “É, temos que organizar algo que seja muito diferente e alternativo à esquerda, em vez de ter o que eu chamo de partido de Wall Street à frente de ambas as legendas”.
O tipo de coisa que me preocupa em relação ao Trump é o que ele está fazendo com o meio ambiente, e o que ele pode fazer com a guerra nuclear. Ele é completamente irracional com esses assuntos. Então, sim, eu preferiria que fosse a Hillary, mas eu não quero estar numa situação em que eu precise dizer que a única alternativa a alguém como Trump é a Hillary, porque isso me parece um retorno aos mesmos problemas que tivemos no primeiro governo Clinton, que foi o começo do processo de venda do governo dos EUA para os investidores e para Wall Street. Então, temos que buscar algo que seja uma espécie de partido não-Wall Street.
E acho que a liderança na estrutura de poder dentro do Partido Democrata é, em certa medida, antagônica a um verdadeiro impulso socialista.
Precisamos de um bom movimento de esquerda real, sólido, nos moldes do que começamos a ver se cristalizar em torno de Bernie Sanders, algo assim. Mas penso que precisamos ir mais longe que isso.
JS: Bernie Sanders se identifica como socialista democrático, mas no seu registro de votos, podemos ver que ele apoiou a mudança do regime no Iraque, e ele disse que daria continuidade ao programa de assassinatos por drones que existia no governo Obama. Como você descreveria Bernie Sanders? Ele é marxista, na sua opinião?
DH: Não, não, ele não é marxista de jeito nenhum. Ele é, como você disse, uma espécia de social-democrata. Mas sociais-democratas têm um longo histórico de serem bastante bélicos, acreditarem em coisas como humanismo militar, esse tipo de coisa. A história da social-democracia é um pouco maculada por isso. Então, eu considero que é preciso haver um verdadeiro movimento socialista de esquerda.
E eu acho que Sanders, à medida que começou a falar mais com os “millennials”, começou a mudar seu discurso para uma linha mais socialista. Começou a falar sobre um sistema de saúde público e sobre acesso gratuito ao ensino superior.
JS: O termo neoliberal é muito usado atualmente por pessoas que parecem não ter a menor ideia do que seja a política econômica neoliberal ou o neoliberalismo. Dê uma definição para essas pessoas: o que significa neoliberalismo?
DH: Eu considero que é um projeto político, que começou em 1970 com a Mesa de Negócios [Business Roundtable, associação dos presidentes das maiores empresas dos EUA], os Rockfellers, e todos os demais, para reorganizar a economia de forma a restaurar o poder de uma classe capitalista em declínio. Eles estavam em dificuldades no final dos anos 1960, começo dos anos 1970, porque o movimento dos trabalhadores estava muito forte, e havia vários ativistas comunitários, o movimento ambientalista, todas essas forças de reforma surgindo, a criação da Agência de Proteção Ambiental dos EUA, todo esse tipo de coisa. Eles então decidiram, por meio da Mesa de Negócios, que iriam realmente tentar recuperar e acumular o máximo de poder econômico que pudessem.
E havia vários elementos nisso. Por exemplo, se você se visse diante de uma situação de ter que escolher entre resgatar pessoas ou resgatar os bancos, você resgataria os bancos e deixaria as pessoas em apuros. Sempre que você encontrasse um conflito entre o capital e o bem-estar das pessoas, você escolheria o capital. Essa era a forma resumida do projeto.
Tem também algumas pessoas que dizem que é só uma ideia sobre livre mercado. É, realmente, livre mercado para alguns, responsabilidade individual, sim. Uma redefinição de cidadania tal que um bom cidadão é um cidadão sem necessidades. Então, qualquer cidadão com necessidades é uma pessoa ruim. Os serviços sociais são organizados para punir as pessoas, não para realmente dar assistência e ajudá-las.
JS: E o que eu costumo considerar um dos aspectos mais visíveis da política econômica neoliberal é a ideia de medidas de austeridade que são impostas às economias dos países do Sul, mas também no caso da Grécia, por exemplo. A primeira coisa que os credores exigem para conceder empréstimos é o fim de programas sociais, e o dinheiro que você gastaria neles passa a ser destinado a pagar o principal ou os juros do empréstimo que está sendo “generosamente” concedido.
DH: É a servidão por dívida, mais uma vez. Você organiza a servidão por dívida de forma a aprisionar as pessoas para que elas precisem pagar. Mas você não tira dinheiro dos investidores. Quer dizer, no caso da Grécia, por exemplo, não é como se alguém tivesse ido atrás dos bancos franceses e alemães que emprestaram o dinheiro à Grécia. Eles basicamente socializaram a dívida, entregaram ao FMI, ao Fundo Europeu de Estabilidade e a todo o resto, e então obrigaram os gregos a pagar.
A bem da verdade, se os bancos cometeram um erro de avaliação, eles deveriam pagar. Mas não pagaram, e esse é o princípio neoliberal em funcionamento. Eu tendo a não gostar do termo austeridade, porque é usado para políticas que são aplicadas à população. Austeridade não é para o capital. E não é para as instituições financeiras em absoluto, não é para o 1% do topo. A austeridade diz respeito aos programas sociais. E, de fato, o estado está profundamente envolvido em subsidiar o capital. Os bancos nunca se ferem. É isso que constitui a ordem neoliberal.
JS: Quando vemos políticos fazendo campanha com base na ideia de que vão reduzir ou eliminar a dívida do governo federal dos EUA, do que eles estão realmente falando?
DH: Bem, é uma espécie de taco de baseball que é periodicamente levado à política. Você se lembra do [ex vice-presidente] Dick Cheney dizendo que “Ronald Reagan nos ensinou que a dívida não importa”. Porque o Reagan fez dívida feito doido, principalmente pelo lado militar, e o Bush, também, fez muitas dívidas.
Então, quando o Obama chegou, os Republicanos viraram e disseram: “Temos que fazer alguma coisa a respeito da dívida”. E isso se tornou a desculpa para impedir que qualquer programa fosse aprovado. Agora que os Republicanos voltaram ao poder, o que eles fazem? Aumentam a dívida em meio trilhão de dólares, ou algo assim.
Não me parece que haja uma questão real nisso, é simplesmente uma desculpa política para inflamar o discurso sobre o endividamento e termos que lidar com a dívida para os nossos filhos, mas aí, claro, tudo é virado do avesso. Como essa última legislação tributária, ninguém se importa com isso, sendo que, na verdade, eles passaram uma eternidade berrando para chamar a atenção para a dívida. É uma ferramenta política que você usa de um jeito bem específico, em um momento histórico específico.
JS: Como seria se a sociedade norte-americana fosse radicalmente reorganizada à luz de uma filosofia ou uma ideologia de base marxista? Ou se o bem-estar social fosse realmente uma prioridade nesse país, em vez de ser cada um por si? O que isso representaria num país grande e populoso como os EUA?
DH: Dizendo de forma direta: eu acho que o futuro dos EUA, caso haja um futuro radical, está mais próximo do que eu chamaria de anarquismo não ideológico. Eu não acho que o país esteja pronto para o tipo de empreitada coletiva que seria realmente necessária para confrontar o poder do Federal Reserve [o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos] e encontrar uma alternativa. Não acho que esteja pronto para pensar em um movimento de massa do tipo que realmente começaria a redefinir como a economia funciona.
Penso que se vai haver algum tipo de esquerda real, vai ser um tipo de política de esquerda socialista-anarquista, e que tem muitas características favoráveis. Vindo de uma tradição de marxismo histórico, eu deveria ser bem hostil ao anarquismo, mas na verdade tenho grande apreço por essa tradição. E acho que há uma área ideológica de intersecção que traz algo de diferente para a história e a cultura dos EUA, e precisamos reconhecer a importância dessa história.
JS: Não há caminho possível para um completo colapso do estado capitalista nos EUA. Estou certo?
DH: Não, eu acho que uma das coisas que está acontecendo na esquerda em alguma medida é a tentativa de redefinir as formas de poder governamental, por assim dizer, que representem alternativas às estruturas estatais existentes. E vejo o ativismo em curso no nível municipal como um caminho interessante para começar a explorar essas alternativas. Podemos criar formas democráticas de governança municipal, por exemplo?
[…]
O que me chamou a atenção [nos protestos em] Ferguson [no estado do Missouri, em 2014] foi a imagem da polícia militarizada — a meu ver, não há como um movimento político imaginar que possa tomar as ruas e estourar as barricadas e chegar a algum lugar. Eles seriam simplesmente massacrados. Então é preciso começar a pensar num tipo de transformação progressiva na política que não envolva confrontos e violência desse tipo, porque, francamente, me parece que qualquer movimento desse tipo seria derrotado. E assim, temos que pensar em um tipo de movimento alternativo.
O problema é que os movimentos que estão tentando construir alguma alternativa acabam sendo criminalizados. Vemos a criminalização dos ambientalistas, por exemplo. Quando se criminaliza, você passa a ter o direito de ir lá e matar essas pessoas.
É esse, basicamente, o problema da esquerda. A esquerda precisa pensar em uma estratégia alternativa em vez de ficar sonhando com a Revolução Russa ou a Revolução Americana ou algo desse tipo.
JS: Eu costumo discutir com pessoas que dizem coisas do tipo: “Ah, sabe, vai acabar tendo um golpe nos Estados Unidos e os militares vão tomar o poder. Ou vão construir campos de concentração da FEMA [Agência Federal de Gestão de Emergência], etc.” E eu já discuti com essas pessoas, inclusive algumas do meu próprio mundo na esquerda, e o que digo a elas é: “O estado não precisa fazer nada disso. Eles não precisam construir um campo de concentração e te colocar lá. Eles já estão vencendo.”
Esse é o capitalismo deste país: a ideia que as pessoas têm de que é preciso um grupo restrito de homens brancos gordos, fumando charutos e imaginando formas de prender todo mundo que se oponha a elas — não é assim que esse tipo de força opera. Está muito mais entranhado em todos os aspectos das nossas vidas.
DH: Sim, e é por isso que eu volto à ideia da servidão por dívida. Uma das formas de exercer controle social é afundar as pessoas em dívidas a tal ponto que elas não possam sequer imaginar um futuro que não seja viver para poder pagar sua dívida.
Se você pensar, um dos maiores limites ao radicalismo, por exemplo, da geração dos “millennials”, é o imenso volume de dívida estudantil que eles têm. Cientes disso, eles não vão conseguir virar o jogo. Servidão por dívida é o que tem para hoje.
JS: Professor David Harvey, muito obrigado por se juntar a nós no Intercepted.
DH: Bem, obrigado por esta oportunidade. Foi ótimo. Obrigado.
Tradução: Deborah Leão
Ilustração: Elise Swain. Fotos: Public Domain e Getty Images.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Obra do DNIT pode destruir saúde financeira, psicológica e espiritual de quilombolas do interior do Maranhão



Por Sabrina Felipe – Vias de Fato
O terreiro de Tambor de Mina Nossa Senhora dos Navegantes, a Igreja do Divino Espírito Santo, uma igreja evangélica, o clube comunitário Raízes do Amor, o Centro de Referência de Assistência Social Quilombola (CRAS), a casa de cozinha coletiva, as árvores frutíferas de onde seu Chicocó, médico do quilombo, tira o substrato dos remédios naturais que prepara e usa na cura de diversos males físicos; dezenas de pequenos comércios familiares; centenas de pequizeiros, cajueiros, azeitoneiras, mangueiras, coqueiros, bananeiras e ingazeiras de onde famílias retiram seu sustento diário, seja consumindo os frutos ou vendendo o seu excedente em barracas de pau e palha à beira da estrada; matas sagradas, utilizadas em rituais religiosos de matriz africana; árvores de diversas espécies, algumas delas centenárias, que garantem sombra e amenizam o calor do asfalto num lugar onde o termômetro facilmente ultrapassa os 37 graus; mais de três centenas de casas que abrigam cerca de duas mil pessoas.
Toda essa riqueza e quantidade de vida, história, cultura e ancestralidade pode desaparecer se o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) levar adiante os planos de duplicação da BR 135 no trecho de cerca de dez quilômetros em que a rodovia atravessa e engole terras quilombolas. Esse trabalho de desmonte custaria alguns dias de operação de máquinas pesadas, mas poderia destruir, de maneira irreversível, a saúde financeira, psicológica e espiritual – além de modos de vida centenários – de quilombolas de Santa Rosa dos Pretos, Barreira Funda, Picos I e II, Centro de Águida, Curva de Santana e Alto São João. Todos esses quilombos pertencem ao território Santa Rosa dos Pretos e são margeados em parte pela BR 135, que rasgou o território no início dos anos 1940.
Quem faz a análise dos impactos da duplicação são os próprios moradores do território. Desde dezembro do ano passado eles estão discutindo as ameaças sofridas pela comunidade com o empreendimento da autarquia federal. Como publicado pelo Vias de Fato, os quilombolas de Santa Rosa souberam, por acaso, de um plano do DNIT para a remoção de 345 casas margeadas pela rodovia a fim de abrir espaço para a duplicação da BR. Os documentos que traziam essa e outras informações foram conseguidos pela comunidade com o uso da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Contradição e inconsistência

Os estudos encomendados pelo DNIT à empresa Zago Consultoria para fins de obtenção de licenças de implantação do empreendimento são, em diversos pontos, contraditórios e inconsistentes. Em um dos trechos do documento produzido pela Zago, a empresa admite que os remanescentes quilombolas que vivem no território Santa Rosa dos Pretos são herdeiros legais daquelas terras desde 1898, e que foi a rodovia que adentrou o território centenário. “A Rodovia BR-135 está situada dentro do território da comunidade, ocupando trinta e dois hectares, quarenta e nove ares e sessenta e oito centiares, cortando parte da terra e influenciando diretamente a comunidade em estrutura, costume e o viver”, afirma o estudo. Em outro trecho, porém, a mesma Zago Consultoria, contradizendo o fato histórico de que a BR foi instalada em território alheio, diz que “com exceção da Vila Cariongo, as comunidades quilombolas [afetadas pela duplicação] estão localizadas na Faixa de Domínio [do DNIT], que é de 70 metros, sendo 35 para a direita e 35 para a esquerda. Essas comunidades e vilas terão interferência do empreendimento principalmente por ocuparem irregularmente a faixa de domínio da rodovia”.
Em outra parte, o estudo afirma: “é preciso mencionar que, uma vez que a BR 135 passa pelo interior dos territórios de várias comunidades quilombolas na região estudada, observam-se diversos espaços sagrados situados às margens da rodovia, dentro da área de servidão. São capelas, tendas de mina, áreas de mato onde se fazem trabalhos religiosos, além de casas onde realizam-se as festas de tambor de crioula. Desse modo, a duplicação da rodovia irá impactar diretamente esses espaços e, consequentemente, essas manifestações.” Contraditoriamente, no trecho onde se refere às remoções – incluindo a Tenda de Mina, as matas sagradas e as casas de uso coletivo –, a mesma consultoria garante: “A relocação dessas populações não vem a comprometer os costumes e tradições culturais.”
Ainda no estudo que fez para o DNIT, a Zago Consultoria assegura “que a coleta dos dados quanti e qualitativos se deu em conformidade com a ética devida aos sujeitos, ou seja, plena ciência e concordância com os objetivos dessa pesquisa.” A reportagem imprimiu parte do relatório e, em visita ao quilombo de Santa Rosa dos Pretos, mostrou o conteúdo do documento a moradores e moradoras que tiveram fotos suas publicadas nele. Todos foram unânimes em afirmar que nunca receberam qualquer informação da Zago Consultoria sobre os objetivos da pesquisa ou sobre a duplicação, e nem deram qualquer autorização para o uso de sua imagem naquele estudo. E mais: em algumas fotos, moradores de Santa Rosa identificaram que as imagens eram reproduções de cenas do documentário “Guardiões de Santa Rosa”, exibido pelo Canal Futura, e para o qual, sim, deram autorização por escrito para o uso das imagens.
Em um dos estudos aos quais teve acesso, a reportagem do Vias do Fato constatou que a consultoria copiou conteúdo – de forma literal ou com pequenas modificações – de textos publicados na Wikipedia, enciclopédia online produzida de forma livre e colaborativa. Os textos identificados como cópia falavam sobre as manifestações culturais Tambor de Crioula e Bumba-Boi, e sobre a religião de matriz africana Tambor de Mina. A reportagem enviou e-mail ao diretor da consultoria, o advogado Fernando Zago Lóes Moreira, perguntando, entre outras coisas, se era uma prática da empresa realizar pesquisas na Wikipedia e copiar conteúdo para compor relatórios. Lóes Moreira não respondeu à questão.

Menos morte para quem?

Um dos principais argumentos do DNIT para a duplicação da BR 135 é o aumento da segurança para motoristas e pedestres. No Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ao qual a reportagem teve acesso, a autarquia federal afirma que “a maneira mais viável de mitigar ou reduzir esse problema seria a introdução de melhorias na sinalização horizontal e vertical da rodovia nos pontos críticos.” Ainda que tal sinalização seja implementada, não há garantia de que motoristas irão respeitá-la. Em um trecho da rodovia que atravessa o quilombo Santa Rosa dos Pretos, na altura do quilômetro 88, basta uma observação de cinco minutos para flagrar dezenas de casos de visível desrespeito à velocidade limite – 40km/h em alguns trechos e 60km/h em outros –; ultrapassagens em trechos de faixa contínua; ultrapassagens pelo acostamento e a não redução de velocidade para permitir que moradores atravessem a rodovia na única faixa de pedestres existente no local.
Dados retirados do site do DNIT, que tomam por base registros do Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF), mostram que entre os quilômetros 85 e 93 da BR 135, que ocupam grande parte do território quilombola de Santa Rosa dos Pretos – localizado entre os kms 86 e 96, em média –, foram registrados 17 atropelamentos entre os anos 2006 e 2011, nos quais cinco pessoas morreram. No mesmo levantamento foram contabilizadas 32 saídas de pista com o saldo de duas pessoas mortas. A saída de pista é o momento em que o motorista, sem controle do veículo, avança pelo acostamento e sobre áreas além dele, onde pode haver pessoas, residências, comércio e escolas. De acordo com quilombolas entrevistados pela reportagem, muitas das saídas de pista só não viraram tragédias maiores porque foram barradas pelas árvores dos quilombos. “Um carro que vinha de São Luís perdeu o controle, passou pelo acostamento e, graças a Deus, tinha um pé de sabiá e o carro subiu e enganchou no alto da árvore. O Jorge [esposo] viu que tinha uma criança no carro, o carro ia caindo da árvore, ele tirou a criança e depois o carro foi arriando pelos galhos. Outra vez um carro perdeu o controle no quebra-mola e enganchou na mangueira. Já virou caminhão de sabão, de gás, de água mineral; uma van com 15 a 20 pessoas virou na porta de casa”, relata Anacleta Pires da Silva, de 51 anos. Jovelina do Livramento Pires Belfort, de 36 anos, que mora a cerca de 100 metros da casa de Anacleta, lembra do motorista de uma carreta que quase entrou na casa de um morador do quilombo. Mortes só não aconteceram porque um pé de manga segurou o caminhão.
Em 30 de maio de 2008, Claudiane Cabral Sales, de apenas 11 anos, foi morta quando voltava da escola, atropelada no acostamento por um motorista que fazia ultrapassagem em local proibido. “Eles dizem que vão duplicar a rodovia pra diminuir os acidentes no trânsito. Será que sou eu que causo os acidentes? É a comunidade que é responsável? Os motoristas matam os outros e é a comunidade que tem que ceder mais espaço pra quem é irresponsável?”, questiona a quilombola Josicléa Pires da Silva, de 23 anos. “Se as pessoas são imprudentes agora, elas vão ficar mais [com a duplicação]. Se você não consegue ser responsável com uma coisa pequena, você não vai ser responsável com uma coisa grande”, argumenta Josicléa.
Vias de Fato entrevistou o engenheiro civil, consultor e mestre em Transportes Rodoviários pela Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo) Helcio Raymundo, e perguntou a ele se, de fato, a duplicação de uma rodovia pode torná-la mais segura. Em relação ao tráfego de veículos, o consultor diz que, em teoria, qualquer tipo de ampliação com duplicação em que se substitui a pista simples pela dupla, há uma redução da quantidade e gravidade dos acidentes. “Na pista simples você tem normalmente colisão frontal, o que você não tem na pista dupla”, explica. Helcio, porém, sem entrar no mérito da duplicação da BR 135, diz que, na prática, não basta apenas a duplicação para garantir segurança viária. O empreendimento, diz ele, precisa estar integrado a um planejamento geral da região onde incide, com melhorias de rede e vinculação ao sistema viário local, estadual e de outros municípios.
Questionado se a duplicação de uma BR também aumentaria a segurança dos pedestres que são obrigados a atravessá-la, o consultor diz que em teoria sim, mas que na prática a duplicação é uma faca de dois gumes. “O projeto tem que ser muito cuidadoso para não piorar as coisas. Como você faz as travessias? Vai ter passarela? Vai ter passagem inferior? O projeto tomou cuidado com essa interface urbana? Muitos projetos dizem que não se pode gastar mais do que um valor determinado, e aí acaba se fazendo não o necessário, mas o possível. Essa é a minha preocupação. Esse aspecto merece muita atenção”, ressalva Helcio.
Segundo quilombolas, além da irresponsabilidade de motoristas, a omissão do próprio DNIT também é causa das mortes por atropelamento na BR 135. Eles afirmam que a autarquia federal não realiza obras de segurança necessárias para o pedestre, como a instalação de quebra-molas e faixas de travessia. “Não tem nada. Esses quebra-molas que a senhora vê foi uma exigência muito grande, precisou que nós fechasse a BR pra ter esses quebra-mola. Eram cinco, deixaram três, e com espaço longe. O interesse deles é matar, é acabar com a população”, diz Benedito Pires Belfort, de 75 anos. De acordo com ele e Anacleta, de 2005 até hoje os moradores do território, por duas vezes, bloquearam a BR 135 em protesto. A primeira vez em função da morte de um bebê recém-nascido afetado pela poeira levantada durante recapeamento da BR; na segunda, para exigir a construção dos quebra-molas após a morte por atropelamento de uma criança.
Em dezembro de 2015, durante realização de documentário no município de Açailândia, no Maranhão, a repórter flagrou e registrou funcionários de uma aciaria privada retirando, com anuência do DNIT, alguns dos quebra-molas instalados em trecho de pista simples da BR 222. Os quebra-molas foram retirados para facilitar a passagem de caminhões que transportam ferro líquido – a mais de 1000 graus celsius – para a aciaria. Naquele trecho, a BR 222 em Açailândia é muito semelhante à BR 135 que corta o território quilombola de Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru-Mirim: pista simples que margeia casas, comércios, unidades de saúde e ensino, igrejas e outros locais de uso público coletivo. Os quebra-molas retirados eram fruto da reivindicação dos moradores ao DNIT, que só os instalou após protestos e mortes por atropelamento. Em substituição aos obstáculos retirados, a aciaria construiu quebra-molas com curvatura quase imperceptível aos veículos – especialmente àqueles cujos motoristas não respeitam limites de velocidade.
No Estudo de Impacto Ambiental da duplicação da BR 135 produzido pelo DNIT e acessado pelo Vias de Fato, o jornal identificou, em um documento de 636 páginas, a ocorrência da palavra veículo/s [automotivo] pelo menos 60 vezes; a palavra pedestre foi encontrada 2 vezes.

Seis de dois mil

Uma das informações que mais chamou a atenção dos moradores de Santa Rosa dos Pretos foi o número de quilombolas ouvidos no território para a produção do estudo do DNIT: seis pessoas, em um universo de pelo menos duas mil – se for considerado apenas o quilombo Santa Rosa dos Pretos. O número aumenta expressivamente se forem contabilizados os quilombos Barreira Funda, Picos I e II, Centro de Águida, Alto São João e Curva de Santana. Ao todo, a Zago Consultoria afirma ter aplicado 37 questionários para a produção do estudo Componente Quilombola. “A amostragem foi realizada em conformidade com a população das seis comunidades quilombolas localizadas às margens da rodovia, sendo: 13 em Outeiro dos Nogueiras, 7 em Pedreiras, 6 em Santa Rosa dos Pretos, 5 na Vila Cariongo, 4 na Vila Fé em Deus e 2 em Santana”, diz o estudo. Também por e-mail, a reportagem perguntou ao diretor da Zago Consultoria se ouvir 37 pessoas seria um número expressivo para um empreendimento da envergadura da duplicação da BR 135, mas ele não respondeu à questão.
Além dessas contradições e inconsistências, a reportagem do Vias de Fato apurou evidências de irregularidade nas obras de duplicação onde estas incidem sobre território quilombola. O jornal questionou a SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão) sobre isso. A secretaria afirmou que abriu processo administrativo para apurar “possível irregularidade ambiental” cometida pelo DNIT, mas que durante a fiscalização em território quilombola não constatou irregularidades.

O que os estudos afirmam sobre os quilombolas… e o que estes dizem por si mesmos

Ao longo de três dias, a reportagem do Vias de Fato visitou e entrevistou mais de 20 moradores do território de Santa Rosa dos Pretos. Um dos pontos principais da entrevista foi perguntar o que eles achavam de algumas afirmações contidas nos estudos do DNIT que foram feitas, supostamente, a partir de dados coletados no território. A seguir, confira algumas das afirmações presentes nos estudos, transcritas aqui de forma literal, e as falas em primeira pessoa dos entrevistados.
“Quando o DNIT chegou aqui já achou nós. Eles invadiram como coisa que é deles. Aí a estrada foi crescendo, crescendo, hoje ela é federal e o governo federal tá fazendo tudo pra tirar nós daqui, sem ter comprado, sem ter alugado, sem ter uma benfeitoria. Eles não respeitam a área de quilombo, eles invadiram, eles não conversam com pessoa nenhuma. Quando chegam já é pra destruir.”
Francisco Pires, seu Chicocó, 60 anos
“Quem invadiu nossa área foram eles. A gente conhece a área como nossa, e eles nunca pagaram indenização por essa estrada [que já foi feita]. Se tirar 345 casas, onde esse povo vai morar? Ninguém aqui é rico, é tudo trabalhador de roça. Eles estão completamente errados.”
Benedito Pires Belfort, 75 anos
“Uma vez eles [funcionários do DNIT] perguntaram pra mim se a gente tinha terreno pra mudar a casa. Eu disse que tinha o quintal da gente, mas aqui tudo é nosso terreno. A gente tem que parar eles, pra eles deixar a gente no lugar onde nós tamos.”
Valéria Silva Gonçalves, 61 anos
“Eu acho muita covardia [o DNIT dizer que os quilombolas são invasores].”
Paulo Leonel Pires, 93 anos
“Se essa tenda cair, não sou só eu que vou cair, mas muita gente. E a gente não tá querendo cair, a gente quer se erguer. Eles não sabem o que significa essa tenda, minha casa, a casa dos meus companheiros. Invasores são eles [DNIT], que chegam sem mais nem menos dizendo que vão derrubar.”   
Mãe Severina Silva, 64 anos, Mãe de Santo da Tenda Nossa Senhora dos Navegantes
“Tenho 74 anos e estive sempre aqui. Isso era um matagal. Aí foi mudando, até quando romperam essa estrada. Vão dizer que somos invasores. Isso é quilombo! E é velho! O DNIT é novo pra nós aqui. Aquele pé de piqui ali é mais velho do que meu avô. Eles não tiram esse pé de piqui aí não. O tanto de casa que eles querem afastar, você é louco.”
Ilário Pires, 74 anos
“Não é verdade. Só essa mão aqui já matou várias pessoas, com a duplicação vai acabar com o resto do povo.”
Bernarda Pires Ribeiro, 53 anos
“A gente criava era galinha, porco, cachorro, tudo. Hoje nem criar a gente pode, tem que criar é preso, se não prender morre na estrada. Com duas BR a situação vai ficar mais difícil.”
Jovêncio Pires, 84 anos
“A duplicação pra gente não precisa, vai ser um caos na vida da gente, redobra a atenção da gente com as crianças. Acho que diminui acidente entre carros, mas pro pedestre fica pior. Estudo dá formatura, mas não dá respeito e nem ensina ninguém a ser educado. Essas pessoas são muito ignorantes, porque não reconhecem nem o humano que eles são, porque se reconhecesse mesmo, eles entendia nóis.”
Raimundo Enedino Pereira, 61 anos
“É muito difícil a zuada, a poluição, mesmo com as árvores, risco de acidente, pessoas que já morreram, os animais também. É muito ruim. Com uma [pista] a gente já vê que não respeitam sinalização, a velocidade é imensa, risco de o carro entrar na casa de uma pessoa, imagine duas. A gente não pode mais criar uma galinha, um porco, nada, porque passam muitos caminhões de grãos, e os bichos vão pra BR ciscar [no acostamento] em vez de ir pro quintal.”
Jovelina do Livramento Pires Belfort, 36 anos
“Pra eles pode aumentar a segurança, mas pra nós do quilombo não vai aumentar a segurança, vai aumentar a destruição, e a primeira são os pé de árvore. Quantas vida eles não vão destruir? Quando eles passar trabalhando, a poeira vem imensa, vai adoecer as criança.”
Maria de Jesus Belfort Ferreira, 63 anos
“A questão do impacto não vai ser só a morte, tem o pensamento e o sentimento. Nosso emocional tá acabado. A gente vive à flor da pele com buzina de carro e freio. A mente da gente, na hora que ouve um freio na estrada já sai correndo. Quantas vezes as pessoas que moram aqui já largaram a comida na mesa e saíram correndo pra ver em quem o carro bateu. Tem uns que pegam essa buzina, ligam lá na baixa da égua e vem gritando. A gente fica todo se tremendo. Mataram uma mulher de resguardo – o carro passou num buraco, o pneu saiu e matou a mulher na barraca na BR. Perto da casa de Benedito tem um homem que perdeu o filho na travessia, era garotinho. O caso da menina [Claudiane Cabral Sales, de 11 anos], ela voltava da escola, já tava entrando no caminho [de casa] e o carro pegou ela no acostamento. Teve Zezinho, titio Domingueira, o meu padrinho foi carro que matou. O irmão dele foi carro que matou. O finado Albino, Mundico, cumpadre Sebastião, nosso mestre de tambor, Damásio do sítio. Luciano, Carlinhos, Zeca, Mazorca, Dédi, os dois de Miranda… ahh, minha filha, se nós for contar aqui vai dar bem mais de 50 [pessoas mortas por atropelamento na BR]. É uma análise muito profunda e dolorosa essa que a gente faz de eles quererem responsabilizar a gente dizendo que a duplicação vai ser lucro e segurança pra nós, porque não vai ser, vai ser desespero. Não tem que duplicar. É ignorância do ser humano querer continuar aumentando o sofrimento de um povo.”
Anacleta Pires da Silva, 51 anos
“Uma pista dessa largura já dá o desastre que dá, que dirá uma pista como eles querem, larga, aí é que os carros correm e matam os pobres.”
Francisco Pires, seu Chicocó, 60 anos
“Não se trata de indenizar. É como se eles viessem oferecer algum troco pela minha vida. Viver é mais importante do que ter qualquer papel, porque dinheiro pra mim é isso: é um papel que foi designado um valor pra ele. A única coisa que vale é a minha vida, a minha casa. Eles não vão indenizar as lembranças que eu tenho, os machucados que eu tenho, os risos, os choros, nada disso. Pra eles, é só uma construção, enquanto que pra mim é a minha vida inteira aqui. E a própria casa é viva, não só pelas minhas lembranças, mas pelas de todo mundo. Essa história de indenização é uma piada.”
Josicléa Pires da Silva, 23 anos
AS OBRAS DE MELHORIAS SÃO UMA REIVINDICAÇÃO ANTIGA DOS MORADORES DOS MUNICÍPIOS DE ANAJATUBA, BACABEIRA, ITAPECURU-MIRIM, SANTA RITA E MIRANDA DO NORTE, QUE A UTILIZAM PARA O TRANSPORTE DE MERCADORIAS E DESLOCAMENTO DA COMUNIDADE (DNIT)
“A gente não faz escoamento de produção. A única coisa que se faz é andar no transporte. A gente também não tem segurança no trânsito, porque tem uns [motoristas de vans coletivas] irresponsáveis que não respeita o limite de velocidade, é uma competição, tem que chegar antes pra voltar antes porque o dinheiro tem que render na mão deles. A gente já teve que descer do transporte [coletivo] e ir a pé pro lugar.”
Anacleta Pires da Silva, 51 anos
“A gente não tem necessidade da duplicação. Eles fazem isso agora, de pedir pra gente afastar a casa. E se daqui cinco anos a necessidade deles for de dizer pra gente afastar de novo? E se depois em outros cinco anos eles vierem de novo? Não vão passar agora [com a duplicação] que é pra não passar nunca mais. Não era nem pra ter passado essa [estrada] aí. A gente vivia muito bem até. Depois dessa desgraça aí foi só preocupação pros outros. O tanto de gente que já morreu.”
Josicléa Pires da Silva, 23 anos
“Nunca me lembro de ter sentado com o DNIT e o DNIT ter proposto algo nesse sentido [da duplicação]. E faz um tempo que tô no movimento [social], desde que era menor de idade. Nunca saí daqui pra morar em outro lugar. Quando a gente soube da duplicação a gente sempre ficava com a preocupação sobre o que iam fazer no nosso quilombo, que a gente não ia aceitar desmatar, prejudicando as pessoas. As árvores servem até de sustento pra algumas famílias.”
Jovelina do Livramento Pires Belfort, 36 anos
“As árvores são a nossa natureza. Como ficar sem as árvores aqui no quilombo? Vai ser muito mais calor. O DNIT quer destruir isso. A gente vai se sentir muito ofendido.”
Maria de Jesus Belfort Ferreira, 63 anos
“Desde que as mangueira começaram a botar, as azeitona, eu comecei [a vender], tem mais ou menos uns 10 anos. Eu que plantei minhas mangueira. Eu não vou aceitar isso assim [a retirada das árvores]. O que a gente vai fazer sem essas árvores, isso é vida aqui. Tenho manga manteiga, manga espada, manga de fiapo, tem caju que vai sair.”
Bernarda Pires Ribeiro, 53 anos
“Sou contra a duplicação porque aqui na minha porta tem uns pé de árvore que eu plantei, eu conservo, eu que limpo. Eu tenho um pé de manga, de caju, de azeitona. Faz um sombreio, a gente senta debaixo, os bichos mariscam de baixo. Esse pé de árvore de azeitona a gente faz remédio dele. A gente faz xarope da casca da azeitona pra diabetes. Do entrecasco do pé a gente também faz. Quando é tempo de fruta, a gente come, vende e dá pra qualquer pessoa. Toda as pessimidade hoje que nós pobre estamos passando é o governo, que não ajuda o pequeno agricultor. O governo federal não ajuda em nada. Aí a gente planta um pé de caju, um pé de banana, um pé de manga e ele destrói.  O DNIT vem, acaba com tudo, derruba, destrói, e fica só esse poeirão pra gente e fica só sofrimento. Aí aparece uma gripe, uma tuberculose, não sabe o que é, mas é a poeira.”
Francisco Pires, seu Chicocó, 60 anos
Pequenos comércios familiares de venda de frutas de época estão ameaçados pelas obras de duplicação. Foto: Andressa Zumpano