Índios Guajajara, Awá Guajá e Ka’por
se unem para recuperar o que a mineradora Vale devorou nas últimas três décadas
Por Sabrina Duran, especial para a RBA
São Paulo – Bruno nasceu seis anos depois da chegada do Dragão de Ferro
à sua comunidade, e por isso não se lembra de como ela era antes da devastação
provocada pelo monstro. Seus parentes mais velhos dizem que muita coisa era diferente:
a mata era abundante, assim como os animais que viviam nela e serviam de
alimento aos antepassados de Bruno. Os peixes, que antes davam e sobravam para
alimentar milhares de pessoas, foram sumindo dos igarapés quando os cursos
d’água começaram a ser interrompidos ou dificultados por contínuos
assoreamentos – ganancioso, o Dragão de Ferro empurra para longe toda terra,
casa e gente que esteja no caminho do seu crescimento.
A Estrada de Ferro Carajás (EFC), chamada de Dragão de Ferro pelas
populações impactadas por ela, teve sua construção iniciada em 1982 e concluída
em 1985. A estrutura ferroviária tem 892 quilômetros de extensão, partindo da
mina de Carajás, no sudeste do Pará, até o Porto de Ponta da Madeira, em São
Luís, capital maranhense. Ela corta 27 municípios, sendo quatro no Pará e 23 no
Maranhão, entre os quais Santa Inês, onde fica a aldeia Januária, da qual Bruno
Caragiu Guajajara, de 26 anos, é cacique.
Além da Januária, outras sete aldeias fazem parte da Terra Indígena (TI)
Rio Pindaré. Com 15.225 hectares e 303 famílias no território, a TI
é uma das afetadas pela Estrada de Ferro Carajás, cujos trilhos passam a
cerca de 12 quilômetros do território. A TI Caru, segundo Bruno, sofre ainda
maiores impactos, já que os trilhos da EFC passam a apenas 50, 100 metros do
território. Ao todo, nos 27 municípios cortados, cerca de 100 comunidades
indígenas, quilombolas, de ribeirinhos, camponeses, pescadores e também bairros
urbanos são impactados.
A construção da ferrovia está inserida no contexto do Programa Grande
Carajás (PGC), maior projeto de exploração mineral do país, idealizado nos anos
1970 durante a ditadura civil-militar pelo governo do general João Baptista
Figueiredo. A exploração, encampada pela antiga Companhia Vale do Rio Doce, que
passou a se chamar Vale S.A. após a privatização em 1997, incide sobre terras
do Maranhão, Pará e Tocantins, perfazendo um total de 900 mil quilômetros
quadrados, que corresponde a um décimo do território brasileiro.
Segundo dados da própria Vale, são transportadas anualmente 120 milhões
de toneladas de cargas, sendo a principal o minério de ferro extraído de
Carajás, que viaja em 330 vagões – com 3,3 quilômetros de extensão ao todo –
sem qualquer proteção. O minério que passa a céu aberto nos trens da Vale é o
“rastro de destruição” deixado pelo Dragão de Ferro nas comunidades que
atravessa.
O pó de minério que cai dos vagões polui rios, igarapés, matas e o ar
respirado pelas pessoas que estão na área de influência da EFC; o trepidar das
locomotivas provoca rachaduras nas casas. Já a “zoada” dos trens, na fala dos
moradores, assusta crianças e idosos e espanta das matas os animais que servem
de alimento à população. E o pior: ano após ano, os trens da Vale passam por
cima de pessoas e animais.
Quando parado nos trilhos, por horas ou dias, o trem com 330 vagões
forma uma barreira de mais de três quilômetros, impedindo a travessia de
pedestres que precisam chegar do outro lado da linha férrea para acessar
escola, trabalho, mercado, hospital, rios, roças, igarapés, a casa de vizinhos
e parentes. Sem alternativa segura e acessível para atravessar, adultos, jovens
e crianças se veem obrigados a passar por baixo do trem para chegar ao outro
lado ferrovia. Qualquer mínimo movimento da composição e o contato com o
corpo pode ser fatal – um único vagão pesa cerca de 80 toneladas.
Segundo dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT),
entre janeiro de 2012 e junho de 2017, atropelamentos e abalroamentos causaram
a morte de 28 pessoas nos trilhos da EFC e feriram outras 21, entre elas, um
bebê que teve o braço amputado; a mãe da criança perdeu um dedo.
Espiritualidade
Com a chegada da EFC em 1982, a cultura e a espiritualidade das
populações indígenas locais também foram afetadas. “A gente sofreu até na parte
cultural. 50% do povo da Pindaré fala português e o restante fala a língua
indígena. Já não domina a língua materna. Isso a gente tem sofrido muito. Em
relação à espiritualidade são poucos hoje que praticam, mas a gente tem sim os
momentos de ritual, a festa da Menina Moça, a Festa do Mandiocal, a Festa da
Criança, que a gente tá em um momento de espiritualidade com nossos ancestrais
que nos protegem hoje. Acredito que 50% dessa perda, tanto da floresta, dos
animais e da cultura, tem a ver com o empreendimento da Vale. Se você andar
daqui de Santa Inês até Tufilândia, que faz limite com a terra indígena, tem
populações pobres, que veem o minério passando todo dia. É uma riqueza muito
grande? É, mas às vezes eles não têm acesso a nada. E onde ele vai procurar?
Dentro da Terra Indígena. Ele vai caçar dentro da TI, ele vai pescar, retirar
madeira dentro da TI. Quando veio a ferrovia, o empreendimento, as pessoas
pensaram ‘bom, vai ter muito trabalho’, e vieram morar perto da ferrovia. Com
isso os brancos foram casando com as índias, e pronto, começou a mestiçagem, e
com tudo isso fomos perdendo o vínculo. Também por conta da BR 316, com o fácil
acesso do branco, a gente perdeu muita coisa”, explica Bruno Guajajara.
Informação
A falta de acesso à informação e à participação popular “promovidas”
pela Vale e pelo poder público são fatores críticos para o bem estar das
populações afetadas pela EFC. De acordo com Bruno Guajajara, entre 2010 e 2017,
a Fundação Nacional do Índio (Funai) foi a responsável por implementar um Termo
de Cooperação e Compromisso nas Terras Indígenas. A Funai levava à Vale as
demandas das comunidades indígenas por mitigação dos impactos causados pela
mineradora e aplicava nas comunidades as verbas de compensação repassadas pela
empresa. De acordo com Bruno, ao longo desses sete anos, cerca de R$ 7 milhões
foram repassados pela mineradora à Funai. “Durante os anos que tivemos a Funai
à frente de tudo isso a gente não se sentiu representado; a gente não tem quase
nada na comunidade indígena”, revela o cacique.
Em meados de 2016, Bruno e outras lideranças do território decidiram
reverter a situação de falta de participação que deixava as comunidades em um
lugar de submissão às decisões da mineradora e da Funai.
“A gente deixou a Funai um pouco de lado dentro do Termo (de Cooperação
e Compromisso). Foi muito dinheiro pra mão da Funai, e a gente entendeu que as associações
tinham condições de gerir esse dinheiro. Inclusive na assinatura (do Termo) tem
os nomes das lideranças e das associações. A gente se juntou com os parentes
Ka’por, os Guajajara da (Terra Indígena) Caru e os Awá, a gente começou a
brigar mesmo e conseguiu. São três associações comunitárias, uma da Pindaré, da
Caru e dos Ka’por. Os Awá não têm associação, mas já estão pleiteando pra poder
gerir esse dinheiro”, contou o cacique. Segundo ele, se dependesse da Vale, ela
“continuaria o acordo junto com a Funai dizendo ‘olha aqui, indígena, isso aqui
é pra você'”, de forma arbitrária e verticalizada.
O Termo de Cooperação e Compromisso firmado entre as comunidades
indígenas e a mineradora contempla ações consideradas estratégicas pela
comunidade: fortalecimento cultural, saúde, educação, etnodesenvolvimento,
sustentabilidade, preservação, fortalecimento institucional das associações
indígenas e proteção territorial.
“Isso se deu com muita luta, a gente batalhando. A empresa vai
transportar agora indo e voltando, e o prejuízo vai ser maior pra gente”,
explica o cacique, referindo-se ao projeto de duplicação da EFC, que vai dobrar
o volume de minério transportado. “Hoje, aqui, principalmente nós da Rio
Pindaré, 50% do território depende do peixe. Nessa época do ano o rio Pindaré
não tava praticamente seco, esse ano ele teve uma enchente boa e acredito que a
gente vai ter uma fartura grande. Mas em compensação, eu fico triste porque a
gente tá finalizando o inverno (período chuvas) e eles está como se já estivesse
no meio do verão (período de seca) por causa do assoreamento. E isso tem
preocupado muito a gente aqui no Pindaré. E a gente tá tendo a visão que isso
se dá por conta do empreendimento.”
As reuniões de discussão do Termo, segundo Bruno, foram puxadas tanto
pelas comunidades quanto pela Vale, mas quem deu “o tom” das conversas e
demandas foram os indígenas. Entre eles, foram realizadas diversas reuniões,
inclusive duas maiores, que reuniram as quatro Terras Indígenas da região: TI
Pindaré, TI Caru, TI Alto Turiaçu e TI Awá Guajá. Por serem reuniões internas
das comunidades, a Vale não participou. Apenas na reunião de negociação é que a
mineradora foi chamada a discutir com os indígenas em um local conhecido como
Sítio dos Padres.
“Uma coisa que eu deixei bem clara (para a Vale) é que eu não ia deixar
eles matarem o rio Pindaré igual eles mataram o rio Doce, que é uma coisa bem
triste, que prejudicou ribeirinhos, assentados, indígenas, todo mundo que
dependia dos rios”, diz o cacique, referindo-se ao desastre ambiental que já é
considerado o maior do país.
Em 5 de novembro de 2015, por responsabilidade da mineradora Samarco,
controlada pela Vale e pela BHP Billinton, rompeu-se a barragem do Fundão, na
cidade mineira de Mariana, inundando o distrito de Bento Rodrigues com cerca de
62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração – óxido de ferro, água e
lama. A enxurrada tóxica matou 19 pessoas, destruiu centenas de casas, poluiu o
solo e avançou sobre a bacia do rio Doce até o litoral do Espírito Santo. Os
impactos ao meio ambiente ainda estão sendo calculados, e é grande a
possibilidade de que sejam irreversíveis.
“Hoje o Rio Pindaré é um rio que dá um suporte pra gente, a gente tem
lazer, a gente tira dali o sustento, uma perda pra nós do Rio Pindaré seria
quase que uma morte pra gente”, afirmou Bruno Guajajara.
Ilegalidades
Quando deu início às suas operações, em fevereiro de 1985, a então
Companhia Vale do Rio Doce extraía, transportava e exportava de 30 a 35 milhões
de toneladas ao ano de minério de ferro. Foram necessárias três décadas para
que a empresa triplicasse esse número para cerca de 120 milhões de toneladas ao
ano. Agora, com o projeto S11D, que prevê a abertura de uma nova mina na Serra
Sul de Carajás, a Vale e o governo brasileiro querem praticamente dobrar o
volume de extração, transporte e exportação em um período de apenas três a
cinco anos. Para tanto, as estruturas que viabilizam o escoamento estão sendo
ampliadas de maneira muitas vezes arbitrária, gerando impactos ainda maiores às
populações afetadas.
De acordo com membros da Rede Justiça nos Trilhos, que atua na defesa
das populações afetadas pela EFC, a duplicação da ferrovia tem diversas
ilegalidades. “O licenciamento do projeto está sendo feito de forma
fragmentada, sem audiências públicas, Estudo de Impacto Ambiental e Relatório
de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) e sem consultas as comunidades.”
Em agosto de 2012, um juiz da 8ª Vara Federal do Maranhão paralisou as
obras de duplicação em função das acusações de ilegalidade apresentadas em Ação
Civil Pública ajuizada pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, pelo
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e pelo Centro de Cultura Negra do
Maranhão, tendo como réus a Vale e o Ibama. Em julho de 2015, a Justiça Federal
do Maranhão, com base numa Ação Civil Pública da Procuradoria da República,
concedeu liminar suspendendo a continuidade das obras de duplicação da EFC.
O argumento era que a Vale, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Funai não consultaram o povo indígena
Awá Guajá durante o processo de licenciamento da obra, tendo desrespeitado,
portanto, a Convenção 169 da OIT, que trata da defesa dos direitos dos povos
indígenas e tribais. O artigo 6º da Convenção obriga a “consultar os povos
interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de
suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas
legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; e
estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar
livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em
todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos
administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas
que lhes sejam concernentes.”
Mesmo com as suspensões e diante das provas de ilegalidade e impactos negativos às
populações, a mineradora continua as obras de duplicação em toda a
extensão da ferrovia.
Criminalização
Diante das arbitrariedades cometidas pela Vale, indígenas e quilombolas
afetados pela EFC recorrem muitas vezes ao bloqueio de estradas e da própria
ferrovia como forma de protesto. Em 11 de junho de 2016, indígenas Awá Guajá,
da Terra Indígena Caru, bloqueara um trecho da EFC no município de Alto Alegre
do Pindaré, um dos mais afetados pela ferrovia e sua duplicação. A acusação era
de que a Vale não estava cumprindo os acordos firmados no Plano Básico
Ambiental (PBA) previsto por lei para a mitigação dos impactos da duplicação da
ferrovia.
Em casos como esse, a estratégia da Vale tem sido criminalizar os
manifestantes por meio de pedidos de reintegração de posse junto à Justiça
Federal do Maranhão. Foi assim com os Awá Guajá que participaram do bloqueio em
junho de 2016; foi assim também com quilombolas que, em setembro de 2015,
bloquearam a EFC na altura do quilombo de Santa Rosa dos Pretos exigindo
direito ao próprio território e questionando o licenciamento da duplicação da
ferrovia.
Na ocasião, mais de 500 pessoas participaram do bloqueio, mas cinco
lideranças quilombolas, praticamente “escolhidas a dedo” pela Vale, foram
processadas pela mineradora. Em audiência de conciliação realizada no último
dia 21 de junho, a Vale, por meio de seu advogado, exigiu que nunca mais, por
qualquer motivo, as lideranças quilombolas bloqueassem a ferrovia. “O que
acontece é o seguinte: pra gente tem lei e pra Vale não tem. Então o que tão
dizendo é pra gente voltar pras nossas comunidades e ficar de braços cruzados
esperando a Vale terminar de destruir a nossa vida e o nosso território”, disse
à reportagem Anacleta Pires da Silva, uma das lideranças processadas.
Pressão
O PBA da duplicação correspondente ao trecho que passa pela Terra
Indígena Pindaré foi assinado em 2016. Segundo Bruno Caragiu Guajajara, a
assinatura se deu em meio a pressões da mineradora para que os caciques das
aldeias assinassem o documento o quanto antes. “A assinatura foi no ano
passado, com alguns indígenas querendo e outros não. Na época eu não era
cacique, pelo que eu ouvi a voz era dos caciques e a Vale usou isso como
estratégia, no sentido de dizer que tem que aprovar, tem que acontecer, as leis
no congresso estão andando e pode mudar de uma hora pra outra as leis
ambientais, colocaram pressão. Aí os indígenas cederam à pressão e assinaram. A
juventude era contra o PBA. No PBA são 5 subprogramas: fortalecimento cultural,
institucional, saúde, proteção territorial e etnodesenvolvimento. Com o PBA a
gente queria uma garantia de acesso a bolsa de estudos, porque hoje a gente
sabe que o acesso à educação é bem precária, e à saúde também, e a gente sabe
que seria compensado ali. A Vale disse ‘não, mas vocês têm que cobrar os órgãos
responsáveis, como a Seduc (Secretaria de Educação), mas a gente sabe que
dentro disso a Vale também tem uma parcela de culpa, e por isso tinha que ter
isso no PBA”, afirma Bruno.
Outra ressalva feita pelo cacique quanto à aprovação do PBA é que o
documento é muito grande e tem muitas palavras técnicas. “São poucas pessoas
que falam português, a gente precisa repassar a informação.”
Mesmo diante de tantas adversidades e das estratégias da Vale para
dificultar o acesso à informação e à participação popular, Bruno diz que sua
visão de futuro, tanto como cacique da aldeia Januária quanto como liderança da
Terra Indígena Rio Pindaré, é que conseguirão recuperar tudo o que o Dragão de
Ferro devorou até hoje. “A comunidade tem que agir como comunidade, tem que
brigar por seus direitos como comunidade.”
A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da Vale para
saber detalhes sobre o processo participativo da população na construção do
PBA, solicitar atas de reuniões, além de informações sobre o Plano, denúncias
de pressão da empresa sobre a comunidade indígena e quantidade de processos de
reintegração de posse movidos pela mineradora contra quem faz protestos nas
linhas férreas da EFC.
A empresa esquivou-se de responder diretamente à reportagem e disse que
todas essas informações estariam no próprio PBA, e que uma cópia digitalizada
do mesmo poderia ser enviada pelo Ibama ou Funai. O Ibama informou que o PBA da
TI Pindaré foi recebido pela Fundação Nacional do Índio. A Funai foi procurada
pela reportagem, mas até o fechamento do texto não havia dado retorno sobre o
documento.
–
Assoreamento do Rio Pindaré é um dos impactos
ambientais causados pela mineração da Vale na região. Foto: Nando Cunha