1.
A Questão.
EcoDebate - Se o problema fundiário brasileiro
começou com a Lei de Terras de 1850, o problema territorial brasileiro começou
com a lei das sesmarias, adaptadas pelo império português à realidade
brasileira.
Esse debate, que muitas vezes atravessou até o
diálogo CIMI e CPT, tem sua razão de ser.
Os índios brasileiros tinham seus territórios
delimitados e guerreavam quando os limites eram transgredidos por algumas
dessas nações. Mas, os primeiros brancos foram muito bem recebidos pelos
índios. Nas três primeiras décadas, enquanto prevaleceu o extrativismo do
pau-brasil, praticamente a questão territorial não se colocou. O problema
começou quando a agricultura e pecuária precisaram do espaço indígena e de sua
mão de obra escrava:
Em geral, nas três primeiras décadas de
colonização, os brancos se incorporavam às aldeias, totalmente sujeitos à
vontade dos nativos. Mesmo em suas feitorias, os europeus dependiam de
articular alianças com os indígenas, para garantir a alimentação e segurança.
Posteriormente, quando o processo de colonização
promoveu a substituição do extrativismo pela agricultura como principal
atividade econômica, o padrão de convivência entre os dois grupos raciais
sofreu uma profunda alteração: o índio passou a ser encarado pelo branco como
um obstáculo à posse da terra e uma fonte de mão-de-obra barata. A necessidade
de terras e de trabalhadores para a lavoura levaram os portugueses a promover a
expulsão dos índios de seu território, assim como a sua escravização. Assim, a nova sociedade que se erguia no
Brasil impunha ao índio uma posição subordinada e dependente (…) Contra essa
ordem, a reação indígena assumiu muitas vezes caráter violento, como a guerra
dos Tamoios, que se estendeu por três anos, a partir de 1560. Incentivados
por invasores franceses estabelecidos na Baía da
Guanabara, vários grupos desses índios uniram-se numa confederação para
enfrentar os portugueses, ao longo do litoral entre os atuais estados do Rio de
Janeiro e São Paulo. A atuação dos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta resultou num acordo de paz,
realizado em Iperoígue, uma aldeia situada onde hoje se localizam os municípios
paulistas de São Sebastião e Ubatuba (…) Outra possibilidade de reação indígena
ao avanço português era a submissão, assumida sob a condição de “aliados” ou
escravos. Essa forma de convivência “pacífica” foi obtida particularmente
graças ao trabalho dos padres missionários que, promovendo a cristianização dos
índios, combatiam sua cultura e tradições religiosas, além de redistribuí-los
territorialmente, em geral de acordo com os interesses dos colonizadores (…)
Finalmente, para preservar a unidade e a integridade de seu modo de vida, os
índios optaram também pela migração para as áreas interioranas, cujo acesso
difícil tornava o contato com o branco improvável ou impossibilitava a este
exercer seu domínio. Essa alternativa, porém, teve um preço alto para as tribos
(Olivieri, 2005).
Canudos, Caldeirão, Contestado, a ocupação dos Sem
Terra, indicam essa luta das camadas marginalizadas da sociedade para ocupar um
lugar ao sol, um lugar no solo, isto é, construir um território, espaço de
trabalho e de vida. É o nosso pecado original, que ainda não alcançou sua
redenção.
No mundo globalizado ele reaparece, de forma
contundente, embora muitas vezes os atores de hoje sejam os mesmos de 500 anos
atrás, particularmente quando se fala nas vítimas das agressões territoriais.
Hoje o conceito de território é dinâmico, pode ser
ampliado, modificado, recriado, inventado, como é o caso do Território da
Cidadania. Pode ser terrestre, aquático e aéreo. Pode ser real e virtual, como
um “sítio” na internet.
Com o aquecimento global, muitos territórios podem
ser eliminados (ilhas), outros podem surgir, como é o caso do Alasca que está
sob o gelo. O Aquecimento Global pode ainda tornar inabitável vastas regiões do
planeta, com é o caso de várias áreas do semiárido.
Até a própria dinâmica geológica pode forçar o
surgimento de outros territórios, como é o caso da separação em andamento do
território da Etiópia do continente Africano pela ruptura da placa tectônica.
A União Europeia inaugurou um novo tipo de
território, o do Euro, com uma série de implicações para a circulação de bens,
moeda e pessoas naquele espaço.
Na América Latina o Mercosul é um território de
circulação de bens, enquanto na Alba se fala na integração latino-americana
para além do econômico.
Portanto, o capital “cria” os territórios de seus
interesses, disputa os territórios das comunidades tradicionais que abrigam
riquezas que lhes interessa, expropria as populações que antes eram senhoras
daquele território. Mas, a lógica da solidariedade não foi eliminada nos povos
ancestrais.
No Congresso da CPT um participante vestia uma
camiseta com a seguinte frase: “o território é uma jaula que o ser humano
inventou para si mesmo”. Mas, será possível viver sem território, ou
transformar a Terra num território que seja realmente livre para o trânsito de
toda a humanidade? É possível, ou mesmo inevitável, a tal governança mundial
para enfrentar os desafios planetários? Ou será que a saída é forjar os
próprios territórios, ou delimitá-los por conta própria, como o fazem as
populações geraizeiras de Minas e da Colômbia? Dá para conviver um com o outro?
Por outro lado, a luta dos quilombolas, indígenas e
comunidades tradicionais trazem a defesa de seus territórios ancestrais, com os
quais a CPT comunga. Por isso, para José de Sousa Martins, a CPT é uma entidade
conservadora, que visa preservar formas de vida que não correspondem aos tempos
modernos. Então, que sentido faz ainda hoje debater sobre o território?
Talvez esse texto sacado de uma matéria publicada
no jornal Estado de São Paulo ajude a pôr mais lenha nessa fogueira. Defendendo
seus interesses, ruralistas afirmam que os territórios indígenas brasileiros
representam uma ameaça maior à soberania nacional que o próprio aluguel ou
venda de terras a estrangeiros. É uma pérola não só do cinismo do setor, mas
particularmente, da entrega total dos seus negócios ao mundo globalizado.
O argumento parte do cálculo de que os territórios
indígenas somam mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, enquanto os
estrangeiros deteriam 43 mil quilômetros quadrados, levando em conta dados
oficiais que a própria nota técnica reconhece como “subestimados”. “Levando-se
em consideração que 12,2% do território brasileiro são ocupados por áreas
indígenas (mais de 107 milhões de hectares atualmente), que, se implementadas
as áreas em estudo esse total passará de 20% e que apenas 0,5% (ainda que
subestimados) sejam ocupados por estrangeiros, o que pode ser considerada uma
ameaça maior à soberania: terras indígenas ou terras de propriedades de
estrangeiros?”, diz o relatório (SALOMON, 2011).
2. Diálogo com Milton Santos.
Nesse contexto, é impossível falar de territórios
sem dialogar com Milton Santos. Então, vamos fazer dele o principal
interlocutor desse diálogo.
Retomemos o conceito que ele dá ao território:
O território não é apenas o resultado da
superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de
coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é,
uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O
território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e
espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território
deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado,
utilizado por uma dada população. Um faz o outro, à maneira da célebre frase de
Churchill: primeiro fazemos nossas casas, depois elas nos fazem…A idéia de
tribo, povo, nação e, depois, de Estado nacional decorre dessa relação tornada
profunda (SANTOS, 2002, pg. 97).
O território sempre foi mais que o espaço que
disponibiliza recursos, mas onde a vida de um povo acontece, gerando uma
identidade única e indissolúvel.
Acontece que o território vem sendo transformado.
Para Milton Santos o fator decisivo é a globalização. Então, todo seu discurso
que segue vem no sentido de compreender hoje o território sob o signo da
globalização.
No mundo da globalização, o espaço geográfico ganha
novos contornos, novas características, novas definições. E, também, uma nova
importância, porque a eficácia das ações está estreitamente relacionada com a
sua localização. Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do
território e deixam o resto para os outros (Idem, pg.79).
Essa política de compra ou aluguel do território
brasileiro para estrangeiros, a invasão dos territórios indígenas e quilombolas,
indo do Xingu, passando pelos Truká e Pipipã na transposição, chegando ao caso
TIPINI na Bolívia, com o financiamento do BNDES, passa por essa lógica de
reconfiguração do território em função dos interesses do capital.
Essa re-espacialização do território gera
consequências rotineiras tão bem conhecidas pela CPT, particularmente a
violência e a desterritorialização das populações ancestrais. Gera também esse
conflito permanente entre os que ocupam o espaço dado como vazio – desde a
época militar o “terra sem gente para o gente sem terra” – até os dias atuais
da ocupação total do campo pelas empresas do agro e hidronegócio, bancados pelo
Estado e governo de plantão. Santos vai falar, então, de umas das piores
consequências, a fragmentação do território, portanto das populações e seu
modus vivendi:
Os territórios tendem a uma compartimentação
generalizada, onde se associam e se chocam o movimento geral da sociedade
planetária e o movimento particular de cada fração, regional ou local, da
sociedade nacional (Ibidem, pg. 80).
No Brasil o principal agente dessa invasão
territorial do capital é a agricultura tecnificada do campo. Ela obedece a uma
lógica global, a instrumentos globais, regidos não mais por interesses
nacionais, mas pelos interesses corporativos das empresas. Por isso, faz
sentido a afirmação dos pensadores do agronegócio atribuindo aos indígenas uma
ameaça maior à soberania nacional que a compra de terras pelos estrangeiros:
…A agricultura moderna, cientifizada e
mundializada, tal como o assistimos se desenvolve em países como o Brasil,
constitui um exemplo dessa tendência e um dado essencial ao entendimento do que
no país constituem a compartimentação e a fragmentação atuais do território
(Ibidem, pg. 80).
E continua:
Cada empresa,porém, utiliza o território em função
dos seus fins próprios e exclusivamente em função desses fins. As empresas
apenas têm olhos para os seus próprios objetivos e são cegas para tudo o mais.
Desse modo, quanto mais racionais forem as regras de sua ação individual tanto
menos tais regras serão respeitosas do entorno econômico, social, político,
cultural, mora ou geográfico funcionando, as mais das vezes, como um elemento
de perturbação e mesmo de desordem. Nesse movimento, tudo que existia
anteriormente à instalação dessas empresas hegemônicas é convidado a adaptar-se
às suas formas de ser e de agir, mesmo que provoque, no entorno preexistente,
grandes distorções inclusive a quebra da solidariedade social {…}
Pode-se dizer então que, em última análise, a
competitividade acaba por destroçar as antigas solidariedades, frequentemente
horizontais, e por impor uma solidariedade vertical, cujo epicentro é a empresa
hegemônica, localmente obediente a interesses globais mais poderosos e, desse
modo, indiferente ao entorno (Ibidem, pg. 85).
Talvez esse texto mereça uma consideração especial,
porque a competitividade quebra a alma das populações, seus valores, sua cultura. Muitas
vezes fazemos esforço de preservação das culturas, mesmo quando elas estão
sendo invadidas. Há, portanto, no território também uma dimensão subjetiva,
também agredida, também saqueada. Talvez a subjetividade seja o último reduto
do território. Muitas das chamadas “nações ressurgidas”, só sobreviveram
porque, mesmo desterretorializadas, mantiveram o território da alma preservado.
Numa conversa com a cacique Lucélia Pankará (PE),
ela dizia que seu povo ainda tem mais de cinco mil pessoas. Perguntei como
sabia. Ela disse que eles mantêm contatos, se conhecem, sabem onde moram.
Ângelo, do CIMI de Pernambuco, disse que há prédios
em S. Paulo cujos apartamentos são habitados apenas por Pankará. Portanto,
construíram seu território em área urbana, num edifício. Conseguiram a quadra
em uma determinada época do ano para realizar seus rituais.
Portanto, a ação de fragmentação do capital pode
encontrar limites, ainda que sejam subjetivos. Mas nem essa defesa é fácil de
ser alimentada:
A palavra fragmentação impõe-se com toda a força
porque, nas condições acima descritas, não há regulação possível ou esta apenas
consagra alguns atores e estes, enquanto produzem uma ordem em causa própria,
criam, paralelamente, desordem para tudo o mais. Como essa ordem desordeira é
global, inerente ao próprio processo produtivo da globalização atual, ela não
tem limites; mas não tem limites porque também não tem finalidades e, desse
modo, nenhuma regulação é possível, porque não desejada. Esse novo poder das
grandes empresas, cegamente exercido, é, por natureza, desagregador,
excludente, fragmentador, seqüestrando a autonomia ao resto dos atores (Ibidem,
pg. 86)..
Por fim, nessa luta titânica, histórica, por
territórios, nesse conflito que atravessa a própria história humana, vale
realçar o papel da agricultura, o ponto focal da CPT ao abordar essa questão:
Desde o princípio dos tempos a agricultura
comparece como uma atividade reveladora das relações profundas entre as
sociedades humanas e o seu entorno. No começo da história tais relações eram, a
bem dizer, entre os grupos humanos e a natureza {…}
Podemos agora falar de uma agricultura científica
globalizada. Quando a produção agrícola tem uma referência planetária, ela
recebe influências daquelas mesmas leis que regem os outros aspectos da
produção econômica (Ibidem, pg. 88).
Poderíamos questionar a agricultura moderna no seu
papel predador, devoradora do meio ambiente, das águas, dos solos, da
biodiversidade. Mas não é esse o caso agora. Falamos de seu papel socialmente
predador.
Portanto, em meio a tantos desafios, temos que
assumir o caráter dinâmico dos territórios, e qual é nosso “quefazer” – como
dizia Paulo Freire – nesse momento da história. Nessa questão, as vitórias
nunca são definitivas, nem as derrotas. Os territórios continuarão a ser
disputados, conforme a configuração do momento histórico, com seu diversificado
jogo de interesses, agora em caráter planetário.
*Articulista do Portal EcoDebate, possui formação
em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe CPP/CPT do São
Francisco.
Referências Bibliográficas.
OLIVIERI, Antônio Carlos. Índios: o Brasil antes do
descobrimento. Disponível aqui. Acesso em: 12/08/2013.
SALOMON, Marta. Terra indígena é ameaça, diz
Câmara. Disponível aqui. Acesso em: 12/08/2013
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal. 6ª Ed. Rio de Janeiro. Record, 2001.