A
leitura de Trainspotting, romance do
escritor escocês Irvine Welsh, me conduziu a refletir sobre o tema da negação
prática da vida burguesa que é – em minha análise – o aspecto central da trama
que tem como fio condutor a experiência com a heroína.
O
psicoativo adentra a vida de Mark Renton, Sick Boy, Spud e Begbie como um
“elixir que tira a vida pra depois devolver”. Mas o que haveria ocorrido para
que estes jovens escoceses encontrassem na heroína “o seu melhor orgasmo”?
A
resposta é uma crítica à segurança que a vida burguesa oferece. Em determinada
passagem Renton profere:
O meu problema é que
sempre que sinto a possibilidade, ou percebo o momento, de alcançar alguma
coisa que eu achava que queria, seja uma namorada, um apartamento, um emprego,
uma educação, dinheiro e por aí vai, ela simplesmente parece tão aborrecida e estéril
que não consigo mais dar valor a ela (p.98).
Dinheiro,
educação de qualidade, emprego fixo, moradia adequada, relacionamento
duradouro: todos estes itens fazem parte do rol de caracteres que determinadas
pessoas consideram componentes apropriados à sociabilidade burguesa cotidiana.
São elementos que ao mesmo tempo ofertam-nos segurança diante do
mundo burguês e fazem nos resignar diante deste mesmo mundo. Em uma
passagem memorável expressa-se Renton:
A sociedade inventa
uma intrincada lógica falsa pra absorver e mudar as pessoas que têm um
comportamento fora do normal. Suponhamos que eu conheça todos os prós e
contras, que saiba que terei uma vida curta, que tenha uma cabeça no lugar etc.
etc., mas que ainda assim queira usar heroína. Eles não vão deixar. Não vão
deixar porque isso é visto como um sinal de seu próprio fracasso. O fato de
você simplesmente escolher rejeitar o que eles oferecem. Nos escolha. Escolha a
vida. Escolha pagamentos de hipoteca. Escolha máquinas de lavar. Escolha
carros. Escolha ficar sentado num sofá assistindo a programas de auditório que
atrofiam a mente e esmagam o espírito, enfiando uma merda de junk food goela abaixo. Escolha
apodrecer mijando e se cagando em casa, um constrangimento total pros pirralhos
egoístas e fudidos que você gerou. Escolha a vida.
Bem, eu escolho não
escolher a vida (p.191).
Renton
nega na sua cotidianidade a vida escolhida. Longe da estabilidade e da
segurança oferecidas pela sociabilidade burguesa, ele encontra na heroína o
remédio existencial para enfrentar o sufocamento capitalista cotidiano. Welsh
apreendeu isso quando escreveu seu romance: jovens não podem ser definidos pelo
seu emprego (seja no mercado ou no Estado). Não podem porque devem buscar
desenvolver sua personalidade humana de tal modo que se tornem incapazes de uma
autodefinição que não seja a de seres humanos. Como escreveram certos
pensadores omnilaterais
Já na sociedade
comunista, onde o indivíduo não tem uma única atividade, mas pode aprimorar-se
no ramo que o satisfaça, a produção geral é regulada pela que me dá a
possibilidade de hoje fazer determinada coisa, amanhã outra, caçar pela manhã,
pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar depois do jantar, segundo
meu desejo, sem jamais me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico (MARX,
Karl & ENGELS, Friedrich. A
Ideologia Alemã. Trad. Frank Müller. São Paulo: Martin Claret, 2007, p.60).
Não
quero com isso dizer que o romance aponte para uma sociedade comunista – que,
obviamente, não pode ser produzida via heroína. Todavia, ao realizar uma
crítica tão contumaz ao amesquinhamento da personalidade humana efetivado pela
sociedade burguesa, Welsh mostra que o não-conformismo diante da
estabilidade e seguranças relativas que o mundo burguês dispõe pode ser um
caminho para uma cotidianidade autêntica pautada na autorrealização
da personalidade humana.
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