De “última fronteira agrícola do país” a projeto abortado pelo governo
por falta de verbas, Matopiba segue nos planos dos investidores, continua sendo
um desafio para povos e comunidades tradicionais e uma ameaça para o cerrado
Por Maíra Mathias – EPSJV/Fiocruz
A “última fronteira
agrícola” do país. O lar de milhares de indígenas, quilombolas, agricultores
familiares e populações que mantêm um modo de vida tradicional, como quebradeiras
de coco, geraizeiros, vazanteiros e comunidades de fecho de pasto. Um
desdobramento da crise econômica internacional. Uma porção do cerrado
brasileiro em que o desmatamento cresce em ritmo acelerado. E, ao mesmo tempo,
uma região tão importante para o equilíbrio hídrico nacional que recebeu o
apelido de ‘berço das águas’. Um gigante de 73 milhões de hectares que, ainda
sim, segue invisível e desconhecido da maior parte dos brasileiros. Matopiba é
tudo isso e mais um pouco.
O nome vem do
acrônimo das iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. O que
eles têm em comum? Vastas porções de terras planas, mecanizáveis. E também
contrariando a noção que associa todo o Nordeste à seca, fartura de água.
Condições ideais para o agronegócio interessado em produzir em larga escala.
Mas não só. A partir de 2008, investidores estrangeiros foram chegando e
Matopiba passou a pipocar no noticiário econômico como uma oportunidade
imperdível. Hoje, estudos já revelam que a região também atrai capital interessado
unicamente em especular com o preço das terras, que disparou. E tudo isso fez
aumentar o número de conflitos com quem estava no cerrado bem antes desse boom.
Parece complicado? Fica mais.
No meio do
processo, entrou o governo federal. Primeiro, através da Embrapa, a Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária, que, em 2013, começou a delimitar
formalmente Matopiba, que hoje, assim como a Amazônia, é considerado uma região
geoeconômica. Com a ida de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (Mapa), em 2015, Matopiba virou marca de um governo que lutava
contra a queda de receitas provocada pelo recuo no preço das commodities e
passou a apostar que intensificar ainda mais a produção de matérias-primas
poderia ser a “salvação da lavoura” para a crise econômica que o país já vinha
enfrentando. Mas, para isso, seria preciso planejar e direcionar investimentos
para “desenvolver” a região, dotá-la de infraestrutura adequada ao escoamento
da soja, do milho, do algodão.
Com o afastamento
de Dilma Rousseff da Presidência da República, a perspectiva
neodesenvolvimentista de Matopiba parece não estar no script do novo governo,
que afirma que não existem recursos para dar continuidade ao projeto. De
qualquer forma, entidades que representam os produtores têm reafirmado a aposta
na fronteira agrícola e se batido contra quem tenta decretar seu fim. Por isso
mesmo, para quem vive lá e para aqueles que se preocupam com o destino do
cerrado, lutar contra Matopiba continua sendo questão de vida ou morte.
O modelo
Mapito. Bamapito.
Mapitoba. Matopiba. Todos esses nomes são ou foram usados nos últimos dez anos
em referência ao processo de avanço da fronteira agrícola na porção
setentrional do cerrado brasileiro. Contudo, as siglas não dão conta do início
dessa história, que remonta ao governo militar. Clóvis Caribé, professor da
Universidade Estadual de Feira de Santana, conta que o oeste da Bahia, região
conhecida popularmente como ‘Além São Francisco’, foi a primeira parada de
fazendeiros que chegaram no finalzinho dos anos 1970 para ocupar os chapadões
que se estendem na divisa com Goiás e Minas Gerais. O que estimulou os
‘sulistas’, como são chamados até hoje pela população local, a se estabelecer
naquelas bandas foi o incentivo federal. Oferecendo um mix de financiamento,
assistência técnica, projetos de irrigação e eletrificação o Programa de
Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento do Cerrado (Prodecer) tinha
um objetivo: fundar núcleos de agricultura “moderna” no interior do país. Eles
seriam uma espécie de exemplo para estimular mais e mais produtores a se
adequarem ao modelo intensivo no uso de máquinas, insumos, tecnologias
(agrotóxicos, fertilizantes, transgênicos).
Mais longeva
parceria entre países para o setor agrícola (foi concebido pelos governos
brasileiro e japonês entre 1974 e 1979, quando começou, se estendendo até
2001), o Prodecer expressava uma certa visão de desenvolvimento: era necessário
“desbravar” o interior do país, como se nada nem ninguém existisse por lá ou devesse
ser levado em conta. “O Estado considerava esses espaços ‘vazios’ e fez a
transferência de produtores do sul do Brasil para lá, regularizou as terras e
repassou para as cooperativas. O Estado fundou um esquema de cooperação técnica
e pesquisa, não à toa o Prodecer financiou a criação da Embrapa. O Estado
montou um sistema de crédito rural pesado. Por último, veio a infraestrutura
logística”, situa Caribé.
Hoje, o enorme
mosaico formado por esses latifúndios monocultores pode ser facilmente visto
por satélite através de programas como o Google Maps. A mancha começa acima do
Parque Nacional Grande Sertão Veredas, vai em direção ao Parque Nacional das
Nascentes do Rio Parnaíba, rodeado por fazendas, que vão subindo. Em sua última
fase, o Prodecer abrangeu também Tocantins e Maranhão. Na Bahia, a região do
‘Além São Francisco’ passou a ser chamada por políticos e produtores de ‘Novo
Nordeste’. Lá, o município de Correntina sintetiza muitas das contradições
desse modelo de desenvolvimento.
Um estudo da ONG
inglesa Oxfam lançado em novembro de 2016 concluiu que menos de 1% das fazendas
brasileiras concentra 45% da área rural do país. No rol das cidades mais
desiguais figura Correntina, onde os latifúndios ocupam expressivos 75% da área
total dos estabelecimentos agropecuários. O relatório, que compara várias bases
de dados, mostra que a bonança do agronegócio fica nas mãos de poucos. Segundo
o último Censo Agropecuário feito pelo IBGE em 2006, o Produto Interno Bruto
(PIB) de Correntina era de R$ 786 mil, riqueza que se dividida pelos 31 mil
habitantes, daria pouco mais de R$ 25 mil per capita. Já informações de 2012 do
Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal mostravam que a
pobreza atingia 45% da população rural e 31,8% da população geral. O índice de
desenvolvimento humano (IDH) do município era de 0,603 em 2010, abaixo da média
nacional (0,813). E o índice de concentração fundiária da cidade é de 0,927 em
uma escala onde o máximo é 1. A Oxfam fez o mesmo levantamento em outros 15
países da América Latina e constatou que prevalece na região a lógica de
desenvolvimento baseada na exploração intensa dos recursos naturais que favorece
a concentração de terras e riquezas nas mãos de poucas famílias, e piora os
indicadores econômicos e sociais para o restante da população.
Outro caso
emblemático deste “desenvolvimento” é o Projeto Agrícola Campos Lindos, no
Tocantins. Criado em 1997 pelo então governador José Siqueira Campos, o projeto
é caracterizado no meio acadêmico como uma reforma agrária às avessas. O
político desapropriou por improdutividade a fazenda Santa Catarina, destinando
seus 90 mil hectares para grandes produtores (dentre eles, a senadora Kátia
Abreu) que pagaram apenas R$ 10 por hectare. Mas, é claro, aquelas terras não
estavam vazias. “A implantação do polo de produção de grãos tocada pelo
ex-governador ignorou as 160 famílias que viviam nessa região da Serra do Centro,
algumas há mais de cem anos. A maioria foi expulsa, algumas resistiram. Estão
lá, mas cercadas pela soja. O córrego que existia antes já não existe mais
porque assoreou, se desmatou tudo”, relata Rafael Oliveira, agente da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) da regional Araguaia-Tocantins, que acompanha os
camponeses que, além de tudo, tiveram de enfrentar uma longa batalha nos
tribunais. Hoje sobraram seis famílias que, recentemente, tiveram de renunciar
ao direito à posse para viver na, agora, área de reserva legal da propriedade.
Como Correntina, Campos Lindos é um exemplo de “desenvolvimento”: por anos foi
o campeão estadual de exportação de soja, por anos figurou nas estatísticas do
IBGE como recordista em pobreza e desigualdade.
O projeto
Se lá atrás ninguém
consultou as comunidades e povos tradicionais sobre o Prodecer ou Campos
Lindos, Matopiba também chegou sem aviso prévio. “Nós ficamos sabendo há um
ano, através da mídia local. Começava a publicidade de que Matopiba ia trazer
dinheiro, emprego, uma nova classe média para o campo. Mas essas promessas não
resistem à realidade quando a gente olha para Campos Lindos, onde o agronegócio
chegou convidado pelo governo e destruiu tudo. O pequeno não tem onde plantar,
todos têm dificuldade para sobreviver, o desemprego está grande”, conta Fátima
Barros, da Associação Nacional de Quilombos (ANQ). Entre as entidades e
movimentos que vêm se articulando para denunciar o projeto, é consenso que,
pela dimensão e complexidade, Matopiba aprofunda a hegemonia do agronegócio no
campo.
Abarcando 337
municípios com seus 73 milhões de hectares, Matopiba é maior do que a Alemanha.
Esses limites foram traçados pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégica
(Gite) da Embrapa que utilizou como primeiro grande critério as áreas de
cerrados existentes nos estados. Com isso, 91% do Matopiba está no bioma,
aglutinando o oeste da Bahia, o sul do Piauí, metade do Maranhão e… todo o
Tocantins. A coincidência de o estado ser domicílio eleitoral da ex-ministra da
Agricultura, Kátia Abreu, não passou despercebida por quem analisa o projeto.
“Olha, por que o Tocantins é 100% favorável e o Piauí é 20% favorável? Será que
o deserto do Jalapão e a Ilha do Bananal, no Tocantins, têm mais potencial do
que a região de Esperantina no Piauí que está plantando soja hoje? Houve
politização do projeto”, afirma Moysés Barjud, vice-presidente da Associação
Nacional dos Produtores de Soja do Brasil (Aprosoja). A Embrapa, contudo,
garante que o Tocantins “desempenha um papel relevante na infraestrutura
regional” e detém expressiva presença de agroindústrias e acrescenta que o
mesmo critério foi usado para incluir a porção norte do Maranhão, com São Luís
e seu porto. Essa arquitetura que soma produção, processamento, estocagem,
canais por onde escoar as matérias-primas para fora do país faz de Matopiba uma
região geoeconômica. E estava na agenda do governo Dilma criar um Plano de
Desenvolvimento Agropecuário (PDA) para desenvolvê-la.
“Que país, que no
século 21, pode se dar ao luxo de ter uma fronteira agrícola? A sétima economia
do mundo, o Brasil. O Brasil tem, nessa área, uma das maiores oportunidades de
crescimento, de desenvolvimento, de mostrar a sua competitividade, o seu
potencial e a sua prosperidade para todos os brasileiros, não só para os brasileiros
dessa região, porque isso faz a roda da economia girar. E quando ela gira, ela
beneficia com emprego e renda; ela beneficia com novas oportunidades; ela
beneficia com mais infraestrutura de qualidade. Ela beneficia todo o país”,
discursou a ex-presidente em 2015. Em maio daquele ano, ela assinou o decreto
8.447 que lançava as diretrizes para esse PDA. A oficialização, diz a Embrapa,
transformou Matopiba em região prioritária, tornando mais fácil fortalecer a
atuação da empresa na região. No período entre 2015 e 2019, estão previstos 73
projetos da ordem dos R$ 117 milhões.
Em 7 de maio,
quando tanto a Câmara dos Deputados quanto a comissão especial do Senado já
haviam votado pela abertura do processo que afastaria a ex-presidente do cargo,
Dilma e Kátia Abreu anunciavam em Palmas a criação da Agência de
Desenvolvimento do Matopiba. Na ocasião, o Ministério informou que caberia à
Agência produzir um Plano Diretor para o Desenvolvimento do Matopiba e adiantou
que duas empresas privadas – Freedom Partners e The Boston Consulting Group
(BCG) – parceiras do Ministério na elaboração da proposta, previam
investimentos entre R$ 29 e 66 bilhões até 2035. “O plano diretor será decisivo
para atrair investidores e empresários mundo afora”, disse Kátia Abreu na
cerimônia, ressaltando: “Por todo lugar do mundo onde estive, todos só querem
saber dessa nova fronteira agrícola brasileira”.
Naquele período, a
ex-ministra ressaltou diversas vezes que Matopiba era fruto de decisão
governamental arrojada. Mas de acordo com quem pesquisa a dinâmica econômica do
capitalismo e seus rebatimentos no país, Matopiba é, antes de tudo, fruto do
mercado. “O capital internacional selecionou Matopiba primeiro, depois o Estado
brasileiro reconheceu. Na época do Prodecer foi o contrário: o Estado desenhou
a estratégia e depois o empresariado chegou”, compara Daniela Egger,
professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV/Fiocruz). “Institucionalizar o Matopiba foi a grande resposta do Estado
brasileiro ao capital. É quando o Estado reconhece que esse negócio está
acontecendo e diz que também quer participar. Com Matopiba, o Brasil mais uma
vez garantiu: ‘estamos abertos; temos água, temos terra e temos leis
favoráveis’”, analisa a geógrafa.
O capital
Mas o que estava
acontecendo no mundo para que investidores estrangeiros começassem a prestar
tanta atenção nessa região do cerrado brasileiro? A resposta dos pesquisadores
é a crise econômica mundial de 2008. Isso porque a saída clássica do
capitalismo para crises é a expansão territorial. “Vivemos hoje essa corrida
mundial por terras. Ou seja, o capital expande seu domínio sobre novas áreas,
abrindo novas fronteiras num processo de acumulação por espoliação que
significa, entre outras coisas, uma violenta apropriação e expropriação dos
recursos naturais, terras e territórios, dando origem ao avanço das fronteiras
agrícolas, das fronteiras da mineração, das fronteiras energéticas”, explica
Daniela, acrescentando que vir para o Brasil foi, inclusive, recomendação do
Banco Mundial. Um relatório da instituição de 2007 afirmava que o país
combinava em alto grau disponibilidade de terras e água.
Mas a corrida por
terras não foi impulsionada unicamente pela vontade de produzir nelas. Um estudo da Rede Social de Justiça e
Direitos Humanos lançado em 2015 demonstra que os investidores
chegam em busca de altos rendimentos e enxergam na terra agricultável um ativo
financeiro. “De acordo com essa lógica, um ‘bom’ investimento financeiro deve
consistir em se comprar terras a preços baixos e vender por preços altos,
realizando os maiores lucros possíveis”, resume Fábio Pitta, um dos autores da
pesquisa. Doutor em Geografia Econômica pela Universidade de São Paulo (USP),
ele explica que na virada do milênio os investidores estavam interessados em
especular com ações das empresas de tecnologia. Quando a bolha estourou, em
2001, eles migraram para o mercado imobiliário dos Estados Unidos e para o
mercado de commodities, dando início ao que ficou conhecido como superciclo.
Essas duas bolhas estouraram também. “Apesar da queda no preço das commodities
é a subida do preço da terra que move diversas empresas a investirem neste
ativo, independentemente da produção agrícola”, diz. As principais áreas de
interesse dos especuladores são terras com potencial para o monocultivo
extensivo. E uma generosa quantidade delas está hoje no Matopiba.
Isso leva a
cirandas financeiras nada óbvias para leigos. A pesquisa da Rede Social se
debruça sobre o caso de um fundo de pensão privado criado para gerir as
economias de professores universitários dos Estados Unidos que especula com as
terras no Matopiba e outras regiões do Brasil. Com um capital de
aproximadamente 866 bilhões de dólares, o TIAA-CREF (Teachers Insurance and
Annuity Association – College Retirement Equities Fund) investe em tudo que
prometa bom retorno. Mas ele não faz isso diretamente e, sim, cria empresas
(holdings) com a finalidade de administrar diferentes tipos de aplicações
financeiras por meio da participação em outras empresas. No caso em questão, o
TIAA-CREF criou uma holding; a holding criou uma empresa brasileira de capital
estrangeiro; essa empresa se associou em 2008 a uma grande empresa brasileira
do setor do açúcar e etanol (Cosan) para criar a Radar S/A cujo negócio é
especular com o preço de terras.
A associação com a
Cosan é importante para burlar as regras atuais de compra de terras por
estrangeiros no país. Desde 2010, a Advocacia Geral da União (AGU) colocou
novos limites para a aquisição de terra por pessoa jurídica estrangeira e
pessoa jurídica brasileira com maior parte do capital social detida por
estrangeiros. A flexibilização dessa regra é uma das principais pautas da
bancada ruralista. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4.059/12 que
pretende abrir essa porteira.
Então, apesar de o
grosso do dinheiro para criar a Radar ter vindo do fundo americano, é a empresa
brasileira que administra o negócio. Portanto, as terras estão sob seu
controle. Em 2009, a empresa administrava 62 mil hectares de terras em 34
propriedades. Em 2012, eram 151 mil hectares num total de 392 fazendas, 182
delas compradas naquele ano. Segundo os dados da pesquisa, a empresa começou
investindo 400 milhões de dólares e terminou 2012 com um patrimônio de 1 bilhão
de dólares. Outro exemplo do efeito inflacionário dado pelos pesquisadores: em
2010 a Radar comprou uma fazenda na Bahia pagando R$ 3.170 por hectare. Hoje,
esse hectare vale R$ 13.910.
Outros fundos e
empresas estrangeiras atuam no Matopiba e muita gente dedica suas pesquisas a
mapeá-las. Mas não é fácil, já que esse capital internacional opera de maneira
complexa criando empresas, que criam empresas, e assim em diante, num labirinto
tortuoso. Por tudo isso, os pesquisadores garantem que se a questão agrária no
Brasil já era um barril de pólvora devido à grilagem, na medida em que os donos
da terra deixam de ser os coronéis conhecidos para se transformarem em capitais
opacos, a situação tende a complicar. “Os donos da terra não têm nenhuma
relação com ela, a gente nem sabe quem são. A joint venture não tem rosto, o
fundo de pensão não tem rosto. Antes eram os latifundiários brasileiros, agora
são também os latifundiários estrangeiros. E quem tinha que acessar a terra no
Brasil nunca acessou. Do ponto de vista da luta, chegar nos latifundiários
estrangeiros vai ser impossível. Eles são intocáveis. Os conflitos tendem a se
acirrar”, acredita Daniela Egger.
As lutas
“Quem defende a
luta ‘fia’, uma hora tá vivo, uma hora tá morto”, ensina Maria do Socorro,
liderança do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB),
que reúne mais de 300 mil mulheres no Pará, Maranhão, Tocantins e Piauí. Elas
vivem em assentamentos, quilombos, dentre outros territórios, e tiram seu
sustento do extrativismo em terras comuns. “O babaçu é uma coisa tão delicada…
Ele mesmo aglomera as pessoas, ajunta as mulheres, faz aquela cantarola para
quebrar aqueles cocos. É bonito todo mundo junto. Por isso se chama comunidade.
As quebradeiras defendem o babaçu porque precisam dele. A comunidade se une
para produzir, para comercializar, para defender”, explica. Ela conta como a
corrida por terras vem impactando suas vidas. “Era empresa chegando e devorando
área de preservação ambiental dos babaçus, e fazendo plantio de eucalipto,
soja, teca… E a gente na defesa e na luta. Os grandes projetos chegando, o número
de empresas cada dia aumentando. Agora estourou. É estrangeiro para todo lado.
A gente ficou sabendo que a Kátia Abreu foi vender essa ideia fora do Brasil e
crismou esse nome: Matopiba”, conta ela.
“Às vezes a gente
acorda com dois, quatro tratores dentro das áreas de gerais, que chamamos de
‘fechos’. E temos que entrar na frente, fazer o necessário para impedir a
derrubada do cerrado. Com o Matopiba aumentou a ação de pistoleiros que entram
nas comunidades para amedrontar e expulsar as famílias. A grilagem aumentou, a
violência no campo aumentou, a tranquilidade das comunidades se perdeu”,
lamenta Eldo Barreto, membro da Associação Comunitária do Fecho Clemente,
localizado no município de Correntina. As comunidades de fundo e fecho de
pasto são tradicionais da Bahia. São chamados ‘fundos’ as áreas de solta de
animais localizadas na caatinga, enquanto os ‘fechos’ estão no cerrado e sempre
foram vistos por essas comunidades como espaços de uso comum. É de lá que as
famílias tiram parte fundamental da sua subsistência. “Além da solta, o cerrado
nos dá frutos nativos e plantas medicinais, é nossa área de lazer. É a vida da
gente”, resume Eldo.
Mas é exatamente
nos ‘gerais’, em cima dos chapadões, onde de 1970 para cá se instalou o
agronegócio. “Não existe expansão de fronteira agrícola sem grilagem de terras.
Não existe Matopiba sem grilagem. Isso por uma razão muito simples: toda
propriedade no Brasil tem origem pública”, diz Mauricio Correa, da Associação
dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) da Bahia. Se chama ‘grilagem’ o
processo de fraude documental e apropriação física de terras públicas. Para um
título ser verdadeiro, a cadeia dominial – uma cruza de biografia com certidão
de nascimento do imóvel – precisa voltar ao momento em que o Estado vendeu a
terra ou, mais raro, provar que aquela terra é uma sesmaria (porções doadas
pelos reis de Portugal a certas famílias). “Se a cadeia sucessória não fecha a
terra pertence ao Estado, são as chamadas terras devolutas”, ensina ele,
completando: “Com o documento fraudado no cartório em mãos, o grileiro precisa
tomar posse desses territórios, que não estão vazios. Isso vai se dando aos
poucos, são situações que envolvem pistolagem, grupos de extermínio, incêndios
criminosos, destruição de casas e roças. A apropriação territorial com
violência foi o principal meio utilizado para a formação dos grandes
latifúndios”.
Mauricio explica
que a omissão dos governos em identificar essas terras contribui para o avanço
da grilagem e, consequentemente, para o acirramento dos conflitos. “A
Constituição Federal estabeleceu um prazo de cinco anos, a partir de 1989, para
que os estados fizessem essa varredura. Na Bahia existe uma clara omissão do
órgão responsável, que é a Coordenação de Desenvolvimento Agrário, em realizar
a identificação e a discriminação dessas terras. Isso porque a Constituição diz
que as terras públicas devem ser prioritariamente destinadas à reforma agrária,
à regularização fundiária dos posseiros e à criação de reservas ambientais.
Então não interessa ao estado mexer nesse vespeiro porque se fizesse uma ação
discriminatória de terras públicas séria concluiria que a maior parte dos
títulos de terra que estão hoje em poder das empresas não são válidos. E essas
terras teriam de ser arrecadadas pelo estado e redistribuídas”, afirma o
advogado.
A desigualdade
fundiária no país é fonte inesgotável de conflitos não só porque alguns não têm
um chão onde plantar, mas principalmente porque essa falta é, antes de tudo,
fruto de uma violência em que o mais poderoso expulsa da terra o mais
vulnerável. “Fomos enfrentando… O grileiro em cima dizendo que era para nós
sair que a terra era dele. E nós dizendo que não saía, nossos avós, nossos pais
era nascido e criado lá, por que era que nós ia sair? Nós não tinha lugar para
ir, nós tinha que ficar ali. Aí eles juntaram um bocado de jagunço assim afora
e levaram lá para atacar nós”, conta dona Maria Zuleide, moradora do
Assentamento Rio Preto, em Bom Jesus no Piauí. Em maio de 2008, 17 famílias,
incluindo a dela, sentiram na pele a cobiça pelas terras no cerrado piauiense:
“Nós estava na roça colhendo. Chegaram lá esses grileiros, chegaram com os
tratores, passaram por cima das nossas casas derrubando tudo o que nós tinha
dentro. E as crianças chorando, e eles só passando o trator por riba. Tocaram
fogo nas roupa, nos documento. Deram um tapa na minha cara, eu estava com um
neném no braço. Outro tapa acertou, quebrou a clavícula do neném”. Depois de
quatro anos dormindo em lonas e vivendo da ajuda de sindicatos rurais e da CPT,
quatro mil hectares foram desapropriados pelo Incra em 2012 e as famílias
voltaram ao território de onde foram expulsas para reconstruir tudo do zero.
Mas episódios de violência como esse se tornam cada vez mais comuns na região.
“Naquele tempo era
um caso específico, hoje a coisa está alastrada. Ano passado [2015] a gente
conseguiu detectar dois conflitos agrários. Esse ano já passamos de 15. Por
isso que eu digo: o sul do Piauí está se tornando o sul do Pará”, sentencia
Altamiran Ribeiro, agente da CPT piauiense. Ele conta que por lá, depois de
ocupar os chapadões planos, as empresas começam a se interessar pelos
‘baixões’. Essas áreas, embaixo das chapadas, são normalmente brejos férteis
onde as famílias vivem. Como o novo Código Florestal prevê que 20% da
propriedade rural precisa ter a vegetação nativa preservada, as empresas – que
com seus monocultivos desmatam 100% – têm se apropriado dos baixões como área
de reserva legal dos imóveis. Essa dinâmica acontece em todo o Matopiba. “Por
gerações temos vivido com o que a natureza nos oferece. Não desmatamos, não
achamos que para viver bem precisamos derrubar o cerrado. Pelo contrário”, diz,
por sua vez, Eldo, esclarecendo porque nesses lugares a vegetação nativa está
de pé. Altamiran conta que as empresas também têm interesse na água disponível
nesses vales alagados.
“Nós nunca seremos
o sul do Pará”, rebate o vice-presidente da Aprosoja, que tem fazenda
justamente em Bom Jesus. Para Moysés Barjud casos de grilagem como o que
expulsou dona Zuleide da terra são “situações pontuais”. “São aquelas ovelhas
negras que eu chamo de falso produtor rural”, diz, completando: “Eu sou
desprovido de ideologias, eu gosto das coisas de forma técnica. Considero o
Piauí um modelo em termos de convivência do agronegócio com a agricultura
familiar”. Ao contrário, ele define como “ideológica” e “política” a luta por
terra, por reforma agrária. “A pauta principal é distribuir terra, não é
distribuir capacidade de viver da terra. O que isso acarretou? Isso fez com que
produtores rurais, vendo a possibilidade de colocar reserva legal em outro
local, para otimizar o aproveitamento da sua área, chegar naquele produtor
rural ribeirinho e dizer: ‘olha, você quer me vender a sua terra?’ E ele fazer
as contas e dizer: ‘olha, eu vou vender, porque eu não estou mais conseguindo
viver dessa quantidade de gado, porque eu não sei como corrigir solo, eu não
sei como explorar isso ou aquilo’. Porque ele vinha de uma agricultura ou de
uma pecuária tradicional que se tornou inviável”, sustenta.
As comunidades
relatam que está mesmo difícil viver, mas que isso tem a ver não com as
tradições, mas com esse tal “desenvolvimento” ensejado pela nova dinâmica
chapada-baixão estabelecida pelo agronegócio. É que a praga que chega para
comer a soja ou outras culturas exógenas ao cerrado são combatidas pelos
empresários com muito agrotóxico. Mas todo esse veneno não mata, só espanta a
praga para outros lugares. “Toda vida que nós trabalha na roça com a enxadinha…
Planta feijão, mandioca, arroz, milho, fava, cabaça, abóbora. Agora eles jogam
o veneno lá em cima e aquelas pragas descem com tudo. O ano passado, colhemos
um saquinho de arroz. Nem mandioca, nem feijão, nem abóbora: a praga comeu
tudo”, lamenta dona Zuleide. Com isso, a soberania alimentar das populações
fica ameaçada. “Antes da [Usina Hidrelétrica de] Estreito sair, você chegava na
feira domingo em Babaçulândia [TO], Carolina [MA], e encontrava milho verde,
feijão, frango, peixe de qualidade, barato. Hoje não existe mais. Agora a água
está em poder do empreendedor. Agora é obrigado migrar para a cidade e comprar
frango da Sadia, que a Globo vende e ainda fala que o agro é tudo”, critica
Antonio Apinajé, liderança indígena do Bico do Papagaio, no Tocantins, se
referindo a outro tipo de impacto, causado por grandes empreendimentos.
Para entender os
conflitos no Matopiba também é necessário olhar para todos os projetos de
infraestrutura do governo brasileiro. São portos, grandes terminais de
estocagem, ferrovias, rodovias, hidrovias, usinas e centrais hidrelétricas que
garantem as condições para que a produção em larga escala seja escoada para
fora do país. Quase sempre para o outro lado do mundo, na China. “O Brasil é o
maior exportador de soja do mundo. E a China o maior consumidor. E tudo indica
que continuará sendo assim: em 2025, a previsão é que a participação brasileira
cresça de 42% para 46%, enquanto os Estados Unidos, segundo maior exportador,
irá dos atuais 40% para 33%”, diz Gerardo Vega, da ActionAid Brasil.
Em seu curto
segundo mandato, Dilma Rousseff teve tempo de entregar ao menos uma grande obra
do Matopiba: o Terminal de Grãos do Maranhão (Tegram), localizado no Porto de
Itaqui. Na cerimônia de inauguração, a ex-presidente citou uma série de
empreendimentos do governo para dinamizar o chamado ‘arco norte’, um corredor
de exportação pensado para desafogar portos no Sul e Sudeste do país, que
incluem a ampliação da ferrovia Norte-Sul, a construção das ferrovias
Transnordestina e Oeste-Leste, obras que vão viabilizar a navegação de cargas pelos
rios Araguaia e Tocantins, dentre outras. Em 2012, a ex-presidente já havia
inaugurado a Hidrelétrica de Estreito na divisa entre Maranhão e Tocantins,
feita com recursos do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento.
Essas megaobras,
diz Gerardo Vega, mostram a sinergia entre agronegócio, mineração e Estado. “O
Estado foi e continua sendo fundamental na moldagem das condições para a
expansão do agronegócio no cerrado, seja através de políticas de financiamento,
assessoria técnica, extensão rural, pesquisa agropecuária, estruturação de
projetos, políticas de zoneamento, infraestrutura de escoamento, energia,
logística de todo tipo. Não é possível pensar a expansão das novas fronteiras
agrícolas, pecuárias ou de mineração sem a participação estatal”, afirma o
pesquisador. Ele defende que esses empreendimentos sejam analisados sempre em
conjunto. “Os impactos são sinérgicos, vão se acumulando no tempo, se somam”.
E é isso que
preocupa Fátima Barros, da Associação Nacional de Quilombos. “Estamos na linha
do impacto da Usina Hidrelétrica de Marabá (no rio Tocantins) e da hidrovia
Araguaia-Tocantins, dois grandes empreendimentos que surgem para servir à
produção do Matopiba. Na ilha de São Vicente [no município de Araguatins]
provavelmente 100% do território será alagado quando a barragem da usina for
construída. Esse projeto foi aprovado sem uma audiência pública para as
comunidades quilombolas. É uma bomba-relógio: a gente só vai ver quando chegar
o impacto”, diz. Ela acrescenta que o boom dos empreendimentos na região é
acompanhado pela demora na titulação de quilombos. O relatório técnico de
identificação e delimitação da ilha foi publicado em março de 2015 pelo Incra.
Mas até hoje não foi regularizado. “A ilha de São Vicente é terra da União, a
SPU [Secretaria de Patrimônio da União] e o Incra poderiam titular rápido. Mas
enquanto esses relatórios e regularizações são cada vez mais negligenciados e
cercados por morosidade, os megaprojetos são acelerados e tem recursos públicos
à vontade”, cri-
tica Fátima.
tica Fátima.
Além das obras e da
omissão em relação à grilagem, as comunidades denunciam que o Estado atua em
prol do agronegócio criando dificuldades ou mesmo paralisando os procedimentos
legais de acesso à terra. No Piauí, por exemplo, a nova lei de regularização fundiária
(6.709/15) não reconhece o direito de posse por moradia e propõe titular
individualmente os pequenos produtores. Entidades defendem que a titulação deve
ser coletiva, pois o modelo individual – defendido pelo Banco Mundial –
facilita a pressão das empresas sobre as famílias para que elas vendam as
propriedades. “A expropriação fica regularizada”, afirma Altamiran.
Na Bahia a
constituição estadual garantiu o direito à regularização fundiária para as
comunidades de fundo e fecho de pasto. “A lei estadual 12.910 de 2013 em tese
viria reforçar esse direito, mas até pelos interesses empresarias envolvidos, o
governo impôs que se as comunidades não se reconhecerem até 2018 elas perdem o
direito à regularização do território. Esse artigo vai de encontro à Convenção
169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] e à própria Constituição
Federal, que nos artigos 215 e 216 garante os direitos dos povos e comunidades
tradicionais ao seu território e aos seus modos de vida”, diz Mauricio,
lembrando que existem muitas comunidades de fundo e fecho de pasto que
simplesmente desconhecem a existência da legislação. E mesmo as comunidades que
já se reconheceram encontram dificuldades. O advogado afirma que nenhum fecho
foi titulado ainda, contra 114 fundos de pastos titulados: “Justamente em razão
da pressão fundiária que as empresas exercem no cerrado”, destaca.
Para quem fica e luta
pelo território, o avanço do agronegócio no Matopiba cria circunstâncias
perversas. Uma das grandes promessas do agronegócio, oferta de empregos, muitas
vezes se resume à catação de raízes e tocos no período em que a fazenda está
sendo formada. O desmate é feito com a técnica do correntão (proibida em todo o
país, com a exceção de Mato Grosso) que consiste em amarrar uma enorme corrente
em dois tratores que, andando emparelhados, vão arrastando tudo o que há pela
frente. “E os camponeses recebem por esse serviço um valor irrisório, centavos
por alqueire. Não é um salário. São condições análogas à escravidão”, diz
Altamiran, arrematando: “Por tudo isso, a gente está tentando articular as
comunidades para enfrentar conjuntamente, dar visibilidade ao que está
acontecendo porque enquanto ficar abafado vai ser a barbárie”.
A terra
A Campanha Nacional
em Defesa do Cerrado foi lançada em agosto de 2016 justamente para abrir um
canal de diálogo com a sociedade sobre o que vem acontecendo com as populações
e o meio ambiente no Matopiba e em todo o cerrado. O bioma ocupa cerca de 25%
do território nacional, se estendendo por 204 milhões de hectares. Inclui o
Distrito Federal e os estados de Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Goiás, Tocantins, sul do Maranhão, oeste da Bahia, sul do Piauí e parte de São
Paulo. O cerrado abriga nada menos do que 30% das espécies de plantas e animais
do país, o que corresponde a 5% de todo o planeta e é considerado tão
importante quanto a Amazônia. Mas, diferente da Amazônia, o desmatamento no
cerrado parece não mobilizar a opinião pública.
“Quem demarcou essa
área, quem decidiu que se chama Matopiba e que é a última fronteira? Simples:
nós não temos como aumentar a fronteira agrícola para a Amazônia porque nós
temos a floresta e nós decidimos que não queremos desmatar. Para o lado direito
temos o Nordeste que é uma área com dificuldades de produção, por inviabilidade
geológica e econômica. Por isso essas áreas de cerrado foram deslocadas do
Nordeste e juntadas ao Matopiba porque é onde tem condições de produção. Se nós
já desenvolvemos o Sul, o Sudeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – e o
desenvolvimento vai subindo sempre do Sul para o Norte – então agora nós
paramos no Matopiba por dificuldade e por opção”, explicitou Kátia Abreu em um
discurso no Senado feito em outubro.
“O cerrado foi
sistematicamente propagandeado como um bioma degradado, deserto, desabitado.
Como consequência, metade da vegetação original já foi eliminada”, diz Isolete
Wichinieski, que coordena pela CPT a Campanha, que tem divulgado que todos os
anos, cerca de 2,2 milhões de hectares de cerrado são desmatados e alertado
que, a esse ritmo, o bioma pode ser extinto em 2030. A recuperação da vegetação
do cerrado também não é simples. Isso porque o bioma tem mais de 45 milhões de
anos. Para se ter uma ideia, a Amazônia tem três mil anos. “É um bioma que
chegou ao seu auge evolutivo. Se ele for degradado, dificilmente se recupera
totalmente”, diz Isolete.
Informações de
consultorias privadas respaldam a preocupação com a preservação do cerrado. Com
o objetivo de mapear as áreas com maior “aptidão” para a plantação de grãos,
essas pesquisas demonstram a rápida deterioração do bioma na nova fronteira
agrícola. Segundo a Agrosatélite, o desmatamento cresceu 61% entre 2000 e 2014
no Matopiba, enquanto nos outros estados com cerrado – já amplamente devastados
– caiu em 64% o ritmo do desmate. Já dados da consultoria Agroícone mostram que
a área dedicada ao cultivo de soja no Matopiba aumentou 253% entre 2000 e 2014,
saltando de 1 milhão para 3,4 milhões.
A Embrapa tem
números diferentes. Segundo a empresa, 12% dos cerrados brasileiros são de
áreas protegidas. No Matopiba, são 17%. Nessa conta entram 42 unidades de
conservação e 28 terras indígenas. Estudos de sensoriamento remoto sobre o
desmatamento da região, entre 2002 e 2010, mostraram que grande parte da
expansão da agricultura ocorreu em locais previamente desmatados, garante a
Embrapa. Já segundo o estudo da Agroícone, o monocultivo da soja se espalhou
sobretudo em áreas de vegetação nativa no Maranhão e no Piauí.
A Campanha pretende
brigar pela instituição da moratória do cerrado, um pacto contra o desmatamento
para coibir o avanço dos monocultivos e também pela aprovação da PEC 504/2010
que inclui o cerrado e a caatinga entre os biomas considerados patrimônio
nacional. “Mas o carro-chefe da campanha é a água. O cerrado é o berço das
águas e, por isso, nosso lema é ‘sem cerrado, sem água, sem vida’”, diz
Isolete.
A água
Um efeito direto da
agricultura mecanizada é a compactação do solo, que dificulta a penetração da
água para o subterrâneo. A baixa no volume causa o desaparecimento de rios,
riachos e brejos. Com solos permeáveis e geologicamente antigos, os
ecossistemas de chapadas funcionam como uma esponja que absorve e distribui
água. É no cerrado que estão os três aquíferos-Guarani, Urucuia e Bambuí – que
abastecem boa parte do país. “Aquífero é como um grande mar embaixo da terra,
uma formação geológica que acumula a água que infiltra”, explica Isolete. As águas
subterrâneas do cerrado voltam à superfície na forma de rios que abastecem
algumas das bacias hidrográficas mais importantes do país, como Amazonas, São
Francisco, Paraguai e Araguaia-Tocantins, além do Pantanal. “Em 2030 o planeta
vai ter 10 bilhões de habitantes. E nós teremos disponível 40% a menos de água
do que hoje. O Brasil detém 12% de toda a água doce do mundo, então a gente já
começa a perceber porque o capital internacional está muito interessado no
cerrado. A água vai ser o ouro dos próximos séculos”, acredita ela.
O agronegócio é o
maior consumidor de água no Brasil hoje. Segundo dados da Agência Nacional das
Águas, em 2015, a irrigação de plantações consumiu 75% desses recursos. A
criação animal levou outros 9%, mais do que a indústria, e quase o mesmo que o
consumo humano urbano e rural (10%). A irrigação é uma solução tecnológica
recomendada pela Embrapa. Mas também é um dos métodos mais controversos do
agronegócio. Um caso vem chamando atenção no oeste da Bahia, de novo em
Correntina. Lá, o empreendimento de algodão, milho, feijão e criação de gado da
empresa Sudotex requisitou permissão para abrir 17 poços de alta vazão que
captam água do aquífero Urucuia. Assim que abertos, a água sobe a metros de
distância, graças à pressão, uma cena que lembra os poços de petróleo.
O Instituto de Meio
Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) do estado autorizou em maio de 2016 a
empresa a captar 58 milhões de litros por dia, o que dá mais de 1 trilhão de
litros por mês. O empreendimento usa o método da irrigação por pivô central na
plantação. “É o método que mais consome – e mais desperdiça – água”, diz o
advogado da AATR Mauricio Correa, que acompanha o caso que vem gerando revolta
na cidade. A reação veio da Associação Ambientalista Corrente Verde que entrou
com uma ação civil pública pedindo a suspensão da captação e a anulação das
outorgas de água para o empreendimento dadas pelo Inema. A preocupação da
entidade é que mais outorgas como essa sejam liberadas para outras fazendas da
região. A liminar autorizando a suspensão foi dada em julho pela Justiça de
Correntina.
Segundo Mauricio,
nos últimos 15 anos, tem havido um aumento exponencial do uso de irrigação por
pivôs centrais justamente nas áreas do chapadão próximas à divisa de Goiás,
principal área de recarga do aquífero Urucuia e onde nascem os rios. “Estudos
indicam que 80% da água do rio São Francisco vem do oeste da Bahia e do norte
de Minas Gerais. Então toda essa água está sendo retirada diretamente do São
Francisco ou de seus afluentes”, diz, lembrando que o reservatório de
Sobradinho chegou a 6% de sua capacidade em novembro, o que ameaça o
abastecimento de água para milhões de pessoas e rebobina o filme da crise
hídrica que atingiu São Paulo em 2014.
Os próprios
fazendeiros têm relatado que a cada ano precisam cavar mais fundo para
encontrar água. As comunidades, por sua vez, relatam a diminuição da vazão dos
rios e estão fazendo medições para tentar comprovar isso. “Os dois
principais rios do oeste são o Corrente e o Grande. E nesses dois rios não
existe mais espaço para outorga d’água”, diz o advogado. Isso porque cada rio
tem uma capacidade total que pode ser outorgada. Ultrapassar esse limite pode
comprometer a vazão, alterando o curso do rio. Nessa conta, entram os
fazendeiros, as cidades, todo mundo. “E esse limite já está esgotado há
bastante tempo. Não é mais possível fazer outorga d’água. Inclusive não há nem
plano de bacia. Essas outorgas, na nossa visão, são todas ilegais. O Inema não
pensa dessa forma”, critica ele. O órgão ambiental recorreu da suspensão. O
Tribunal de Justiça acatou o recurso do Inema, autorizando a captação
subterrânea no dia 3 de novembro. Os argumentos usados pelo Inema e repetidos
na decisão judicial são econômicos: sem água, a empresa poderia suspender a
operação. Agora, os moradores de Correntina colhem assinaturas para integrar
uma petição pública que suspenda novamente as outorgas. “Para nós o agro não é
tudo. O cerrado é tudo. Nossa água é tudo”, sentencia Antonio Apinajé,
resumindo o sentido da luta.
O fim?
Mas justamente
quando a resistência ao Matopiba começa a ganhar musculatura em diversas
entidades e movimentos sociais, as idas e vindas da conjuntura política
descortinam um cenário de incertezas. As dúvidas sobre se Matopiba chegou ou
não ao fim ganharam força quando o Departamento de Desenvolvimento Agropecuário
para essa região, criado em março pela ex-ministra Kátia Abreu, foi extinto em
19 de outubro por decreto presidencial. “Infelizmente o Mapa [Ministério da
Pecuária e Agricultura] achou por bem desmanchar o departamento criado para
atender essa última região de fronteira agrícola do país. Mas o Matopiba não
depende mais da vontade de um governador, um governo federal, um ministério. O
Matopiba é uma realidade que não volta mais atrás. Os empresários decidiram que
o Matopiba é o lugar: é a última fronteira agrícola do país”, reagiu ela, no
mesmo dia, do púlpito do plenário do Senado.
Em 16 de novembro,
uma audiência pública, também no Senado, discutiu Matopiba. Lá, o representante
do Ministério da Agricultura, Eduardo Mazzoleni, garantiu que o governo estava
dando prosseguimento ao Plano de Desenvolvimento Agropecuário do projeto.
“Estamos na etapa de elaboração do Plano, definindo cadeias produtivas e ações
prioritárias para posteriormente fazer a publicação”, disse. A posição
oficial da pasta, contudo, parece não ser essa. Procurado pela Poli, o Mapa
respondeu através da sua assessoria de imprensa que Matopiba seria
descontinuado por falta de recursos. Ainda de acordo com a assessoria, o Mapa
“está trabalhando” por todos os estados igualmente por meio do Plano Agrícola e
Pecuário que disponibiliza linhas de crédito rural para produtores de todo o
Brasil. O Mapa não deu mais detalhes sobre a decisão, tampouco enviou
informações sobre os recursos já investidos no Matopiba a tempo do fechamento
desta reportagem. Mas como a própria Kátia Abreu deixa claro, a despeito do
apoio formal do governo federal, Matopiba é uma fronteira agrícola ‘definida’
pelo mercado.
“O Matopiba tinha
uma ligação muito clara com a Kátia Abreu, que capitaneou todas as negociações
com o capital privado, fechou acordos para investimentos naquela área com o
Japão, por exemplo, vendeu o projeto para investidores árabes. Matopiba era a
vitrine dela. Ela saiu, entrou o Blairo Maggi, e eles são de grupos opostos. O
agronegócio não é um bloco homogêneo. Como em todos os setores econômicos,
existe disputa entre os diversos grupos. Cada um quer dar a sua marca na
gestão. Mas ambos são ruralistas e querem o avanço do agronegócio”, analisa
Karina Kato, pesquisadora do Observatório de Políticas Públicas para a
Agricultura (OPPA). Moysés Barjud reforça essa leitura: “O Matopiba se tornou
político. Houve um erro, nesse sentido, lá na sua criação, e agora a gente paga
o preço. Tudo aquilo que era para ter sido técnico e ter avançado por algum
motivo ficou no meio do caminho”, analisa ele, continuando: “Nós entendemos
que, ao invés de abandonar o projeto, o atual ministro deva corrigir os erros
que a ministra anterior cometeu”.
De acordo com
Karina, o recuo do governo federal não significa necessariamente uma
paralisação nos investimentos no Matopiba: “Pelo contrário. E nem significa que
não vai ter o apoio do Estado no avanço desses investimentos. O que aconteceu
foi uma desinstitucionalização, você deixou de ter no Ministério da Agricultura
uma estrutura que controla ou tenta articular esses investimentos privados
nacionais e internacionais. O que pode até acelerar o processo, porque você
deixa a dinâmica toda na mão da iniciativa privada”.
Mas será que o
recuo do papel do governo federal no Matopiba terá repercussão para própria
resistência e organização das comunidades e povos afetados pelo avanço da
fronteira agrícola? Para Karina, tampouco a luta contra Matopiba deve ficar
refém do seu maior ou menor grau de institucionalização: “Para quem está no
território o decreto não faz tanta diferença. Muitos nem sabem o que é o
Matopiba. Mas eles vivem o Matopiba porque vêem o avanço da fronteira
produtiva, sabem que o preço da terra está num processo acelerado de
valorização, estão em contato com cada vez mais empresas entrando nos
territórios, são expulsos ou acompanham expulsões de famílias de posseiros que
não têm o título da terra. E trabalham em situação análoga à escravidão fazendo
a limpeza do terreno para a formação dessas enormes fazendas. Tudo isso eles
sentem na pele”. Às claras, em plena vitrine do governo federal, ou opaco,
restrito às páginas especializadas dos jornais, com o nome de Matopiba ou sem
nome algum, a certeza dos povos e comunidades tradicionais é uma só: o
agronegócio avança sobre seus territórios, está batendo à sua porta.
—
Imagem: A
região geoeconômica abarca 337 municípios, se estende por 73 milhões de
hectares e atravessa diversos territórios ocupados por populações tradicionais
e camponesas- Foto: Ilustração Artur Monteiro.
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