Ataque no Maranhão chama a atenção para questão do reconhecimento de
terras indígenas. Fala-se em momento mais crítico desde a redemocratização
Por Nádia Pontes – CartaCapital
Inaldo Gamela ainda se recupera do tiro que levou na cabeça. Ele não
sabe exatamente de onde partiu o disparo, mas acredita ter escapado da morte.
“Eu cai depois que fui atingido, eles vieram atrás de mim. Queriam me matar.
Mas consegui fugir”, narra um dos líderes do povo indígena gamela sobre o
confronto mais recente com fazendeiros no norte do Maranhão.
No dia do ataque, domingo 30, os indígenas faziam por conta própria a
retomada de uma porção de terra que, segundo defendem, é tradicionalmente
ocupada pelos gamela, mas está nas mãos de pecuaristas. A etnia, dada como
extinta na década de 1940, quer recuperar sua história.
“Achamos uma certidão que mostra que nossas terras foram ‘doadas’ pela
Coroa em 1769”, conta Inaldo. “Encontramos o registro de um processo dos
indígenas contra fazendeiros em 1822 e uma venda das terras fraudada no
cartório”, adiciona o líder.
O histórico de fraudes, corrupção e grilagem quase calou para sempre os
gamela. Em 2014, as lideranças iniciaram o processo para o reconhecimento de
suas terras tradicionais junto à Funai (Fundação Nacional do Índio), que não
progrediu desde então.
“Vemos um Estado anti-indígena, apesar de ter uma Constituição que
garanta nossos direitos”, menciona o capítulo 8 da Constituição, que reconhece
os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas por índios.
Fila de espera
O pedido de demarcação dos gamela, oficialmente, ainda não existe na
base de dados da Funai, que acumula centenas de processos na fila de espera. O
monitoramento feito pelo ISA (Instituto Socioambiental), que acompanha as
informações divulgadas no Diário Oficial, aponta 704 pedidos – 480 foram
concluídos, com terras indígenas demarcadas.
“A maior parte dos processos em andamento tem forte concentração no
centro-sul do país. Onde, não por acaso, há maior ocupação do território, com
destinação privada das terras que foi feita à revelia dos índios,
historicamente”, comenta Márcio Santilli, sócio fundador do ISA e ex-presidente
da Funai. Nessa parte do país, fora da Amazônia Legal, vivem cerca de 40% da
população indígena.
Dentro e fora das áreas demarcadas, a disputa pela terra gera violência,
aponta o relatório publicado anualmente pelo Cimi (Conselho Indigenista
Missionário). Dos 71 confrontos registrados em 2015, a maioria ocorreu no
Maranhão. Em todo o país, 137 indígenas foram assassinados naquele ano.
Marcha para trás
Organizações internacionais que acompanham o debate veem um cenário de
retrocesso. “Hoje temos uma conjuntura crítica, que foi se aprofundando ao
longo dos anos. Vários projetos de lei suprimem ou relativizam de vez os
direitos indígenas, por iniciativa do próprio Executivo”, comenta Danicley
Aguiar, do Greenpeace.
Ele faz referência principalmente à PEC 215, que transfere para o
Congresso a aprovação das demarcações das terras indígenas, e ao projeto de lei
que permite a exploração comercial por terceiros de recursos dentro do
território indígena. “A nossa união com os indígenas é natural, pois são eles
os maiores protetores das florestas”, diz o coordenador da Campanha Amazônia do
Greenpeace.
Na visão de Santilli, que presidiu a Funai de 1985 a 1996, o país vive
seu momento mais crítico desde a redemocratização. “Vemos iniciativas de
retrocessos legais”, analisa. A pressão viria, principalmente, do setor
agropecuário e segmentos ligados a grandes obras de infraestrutura. “O setor
agropecuário tem poder muito grande dentro do Congresso, porque é o segmento da
economia que banca as campanhas eleitorais dos grandes partidos”, afirma
Santilli.
CPI e intimidação
Para os parlamentares que conduziram a Comissão Parlamentar de Inquérito
da Funai, o problema não seria a falta de terra. “Considerando que a população
indígena do Brasil é composta por 817.963 índios, ocupando 117 milhões de
hectares, 13,7% de todo o território nacional, é difícil imaginar que a grande
condição de indignidade dos mesmos se resuma apenas à questão da terra”, diz o
relatório final, de mais de 3 mil páginas.
A CPI, presidida pelo deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), foi criada para
investigar denúncias de irregularidades na atuação da Funai e do Incra na
demarcação de terras indígenas e quilombolas, mas deputados da oposição acusam
a comissão de proteger grileiros e tentar criminalizar entidades que lutam em
defesa dos índios.
Segundo o relatório final, divulgado no início de maio, a Funai é
influenciada por “interesses escusos” de organizações não governamentais que
recebem dinheiro do exterior. “Assim o fazem com base em laudos fraudulentos,
em conluio e confusão de interesses com antropólogos e ONGs, muitas vezes,
respaldados, juridicamente, por segmentos do Ministério Público Federal e
patrocinado por soberanias outras que pretendem a nossa relativizar”, afirma o
texto.
Márcio Santilli cita motivação política, e inconstitucional, por trás do
relatório. “São parlamentares que se opõem à efetivação do preceito
constitucional que determina à União a demarcação das terras dos índios”,
defende. “O intuito é intimidar.”
Ainda assim, acredita Inaldo Gamela, as lideranças indígenas não vão
recuar. “Numa conjuntura como essa, em que o Estado é nosso inimigo, ou a gente
faz a luta pra retomar nossas terras ou a gente vai ter que esperar milhares de
anos”, afirma o indígena, que estudou no seminário e já foi padre, mas
abandonou a batina para defender sua etnia.
Procurada, a Funai não atendeu à solicitação de entrevista da DW Brasil.
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Foto: Centenas de processos para demarcação de terras aguardam conclusão
na Justiça (Sumaia Villela/Agência Brasil).
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