ESBOÇO SINTÉTICO PARA UMA
CRÍTICA ONTOLÓGICA: LÉA ANASTASIOU E A DIALÉTICA DOS PROCESSOS DE ENSINAGEM
José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior[1]
Para Saulo Pinto Silva,
pelas aulas.
“O trabalho educativo é o ato de produzir,
direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”.
(Demerval
Saviani, A pedagogia histórico-crítica).
A premissa supracitada de Demerval Saviani nos
revela o quanto o trabalho[2] educativo, ou seja,
a educação como práxis criadora, como
atividade prática dos homens, é
direta e intencionalmente uma relação mediada
e concreta, no qual cada indivíduo,
dotado de características particulares,
singulares e subjetivas, estabelecem um nexo
teleológico-causal[3]
com a Humanidade[4],
compreendida aqui no sentido lato, o Homem como um Todo, nunca acabado, pois
permanente em fazer-se (Homem). Esta Humanidade
que se faz e ao mesmo tempo em que se
faz produz historicamente e coletivamente
necessidades e novas possibilidades
educacionais, põe-nos a refletir objetivamente acerca daquilo que
Anastasiou (2005) chamou de processo de
ensinagem. Na síntese crítica por ora escrita, pretendemos buscar
apresentar objetivamente as ideias centrais que constituem o foco de análise e intelecção da autora. O artigo de Anastasiou está subdividido em
oito tópicos, a saber: 1) Ensinar, 2) Aprender e Apreender, 3) Processo de
Ensinagem, 4) Processo de Ensinagem: o movimento necessário, 5) O movimento e o
método dialético: breve incursão, 6) As operações de pensamento, 7) Dos passos
aos momentos, e 8) Na busca de uma síntese possível. Todos os oito tópicos
apresentam uma coerência interna
(em-si) simultaneamente em que constituem
um nexo histórico, causal e objetivo dotado de coesão interna e externa
(em-si e para-si).
No primeiro tópico Ensinar, Anastasiou (2005, p.12) escreve que:
Um dos elementos básicos de
discussão da ação docente refere-se ao ensinar, ao aprender e ao apreender.
Essas ações são muitas vezes consideradas e executadas como ações disjuntas,
ouvindo-se até de professores afirmações do tipo: “eu ensinei, o aluno é que
não aprendeu”.
Isso decorre da ideia de
que ensinar é apresentar ou explicar o conteúdo numa exposição, o que a grande
maioria dos docentes procura fazer com a máxima habilidade de que dispõe; daí a
busca por técnicas de exposição ou oratória como elementos essenciais para a competência docente.
A
escritora vai começar a esboçar aqui uma diferença entre aprender e apreender
no qual, o processo de ensino, transforma-se numa mediação entre os dois momentos supracitados. Por essa via não há
disjunção, mas sim uma conexão entre
o que é exposto ou explicado com a forma
de apresentação e o conteúdo histórico.
Entender a história[5], a gênese do
ensinar, significa compreender os processos históricos objetivos que estão em
permanente movimento. Daí decorre a crítica da autora ao modelo jesuítico, o Ratio Studiorum, que transformava as
aulas em passos descompassados sem a preocupação do processo de humanização,
mas fixando categorias eternas via técnica da memorização.
Se
o insignare é um processo de mediação
entre aprender e apreender (tópico dois), o que diferencia estes dois momentos
do processo de ensinagem?
O apreender, do latim, apprehendere, significa segurar,
prender, pegar, assimilar mentalmente, entender, compreender, agarrar.
[...] O verbo aprender, derivado de apreender por síncope, significa
tomar conhecimento, reter na memória mediante estudo, receber a informação
de... (ANASTASIOU, 2005, p.14)
Essa
diferença que a escritora faz é de fundamental importância. Apreender é uma
ação muito mais complexa que aprender posto que o sujeito do conhecimento (o
aluno, p.ex.) se apropria do conteúdo e da forma que o professor leciona o
mesmo, através de um processo de assimilação. O aprender, unicamente,
jesuiticamente, reduz o apreender a uma memorização mediante o estudo. É claro
que aprender é um momento importante do movimento de ensinagem; todavia
enquanto a apreensão é uma totalização em
curso[6],
o aprender é uma totalidade já fixada, fechada, memorizada.
Por
isso tudo, é que a autora escreve no tópico três (Processo de Ensinagem) que:
Foi diante dessas reflexões
que surgiu o termo ensinagem, usado então para indicar uma prática social
complexa efetivada entre os sujeitos, professor e aluno, englobando tanto a
ação de ensinar quanto a de apreender, em um processo contratual, de parceria
deliberada e consciente para o enfrentamento na construção do conhecimento
escolar, decorrente de ações efetivadas na sala de aula e fora dela
(ANASTASIOU, 2005, p. 15).
O
neologismo ensinagem significa justamente que ensinar, aprender e apreender
são momentos do movimento educativo.
Uma educação em movimento, com seus
devidos sujeitos históricos (corpo docente e discente), deve estar atenta às
novas práticas de ensino e aprendizagem que visem à humanização do homem pelo ato educativo. Isto posto nos revela o
quanto a ação de ensinar é uma efetiva sociabilidade prática na medida em que
cria mediações complexas (novos conteúdos, novas formas, novas técnicas de
ensino, etc.) onde o contrato entre professor e aluno expressa que, pelo ato
educativo, pela práxis criadora da educação, ambos sujeito-objeto do processo
de ensinagem, tornam-se cada vez mais sociais e sociabilizados pela educação.
Há, portanto, um recuo do Estado de Natureza hobbesiano rumo a uma socialização
da natureza e do próprio homem, seja pelo trabalho (Marx) ou pela arte (Lukács)[7]. O homem quando se educa vai
paulatinamente eliminando o poder da “miséria, da imundície, da solidão, da
barbárie, da ignorância e da crueldade” (HOBBES, 2006, p.138). Como se vê a
partir deste uso linguístico hobbesiano, o saber educar é conhecer a existência
de novas necessidades e novas possibilidades que se abrem no constante processo
elaboração de questionamentos e respostas, de formas do conteúdo e do conteúdo
das formas, da aula expositiva e a exposição da aula, saber e sabor (como prega
a autora) enfim, a lista é infindável. A ação de ensino pela mediação docente e
a aprendizagem do estudante coagem o tempo inteiro se, e somente se, o ato
teleológico-causal educativo trabalhar objetivamente as processualidades
subjetivas em uma relação de objetivação que vise à compreensão, apreensão do
conteúdo objetivo a ser ensinado de forma satisfatória. O desafio da educação
como práxis é claramente tornar a práxis educativa, educadora e ativa.
No
tópico quatro, processo de ensinagem: o
movimento necessário, Anastasiou (2005, p.18) escreve que:
Para entender o movimento
do pensamento, é importante retomar os
elementos da metodologia tradicional. Como a inteligência era associada à memorização,
o trabalho docente se dirigia à explanação do conteúdo e à manutenção da
atenção do aluno. A exposição era o centro do processo, acompanhado da anotação
e memorização: a estratégia predominante era a da aula expositiva tradicional.
É
salutar entender que a autora não abdica totalmente da metodologia tradicional.
Claramente isso seria um equívoco porque a preleção do docente, as dúvidas dos
alunos, a feitura de exercícios para fixação e a memorização são momentos
importantes da aprendizagem. Só que eles não esgotam em si tal processo. A
historicidade aqui deve ser enfatizada posto que hodiernamente o foco está na
apreensão do conteúdo a ser apre(e)ndido. O aprender e o apreender levam
dialeticamente a produção de uma nova forma-conteúdo:
o processo de ensinagem.
É
justamente essa dialética, presente o tempo inteiro no texto de Anastasiou, que
ela vai enfatizar no tópico cinco intitulado: o movimento e o método dialético: breve incursão. O foco da autora
está na defesa da lógica dialética perante a lógica formal no que tange a
apropriação do conhecimento e de como esse conhecer (saber da existência) deve
se tornar próprio e propriedade de indivíduos-sociais.
Bebendo em autores como Georges Politzer, Vieira Pinto, Wachowicz, a filósofa
brasileira Marilena Chauí, o filósofo marxista/lukacsiano Leandro Konder e
Karel Kosik, Anastasiou insistirá na superioridade epistemológica da lógica
dialética sobre a lógica formal, como um processo espiráleo de totalização. De
fato, a lógica formal (presente em autores como Michel Foucault[8]) suprime o conflito, a
contradição. Quando a educação, a ação de educar, se torna apenas uma análise formal, não-dialética, qualquer
autor que adote esse percurso epistemológico
deixa de se preocupar com as contradições objetivas da realidade social (no
nosso caso, a sala de aula, p.ex.). Ou como escreveram dois velhos filósofos
alemães:
“Não é a consciência que determina a vida,
mas a vida é que determina a consciência”.
(Marx
& Engels, A Ideologia Alemã).
Apesar de a compreensão metodológica remeter a uma
subjetividade (a escolha pessoal do método), o modo como uma determinada
sociedade se reproduz materialmente põe a questão para o plano da objetividade. A objetividade, portanto,
implica no estudo efetivo da realidade que independe das representações, das vontades[9] humanas. Deste modo, voltando à citação
de Marx e Engels, não se explica a vida material pela consciência, mas sim se
explica a consciência pelas contradições
da vida material. Para o nosso caso, não se explica o processo de ensinagem
pela consciência[10], mas sim pelas contradições
da vida material.
Nos termos da dialética, destaque especial merece
ser dado ao filósofo alemão George W. F. Hegel (1770-1831). A dialética é em
Hegel idealista posto que concebe a
realidade como manifestação do Espírito a partir dos movimentos de
exteriorização (manifestação nas obras produzidas) e interiorização (sabedoria,
reconhecimento e compreensão de que as obras são produto do Espírito). Além
disso, a filosofia da história de Hegel apresenta como motor interno a contradição, bem como essa mesma
história é, na verdade, a história do Espírito[11].
Todavia,
Marx e Engels vão opor-se a esse entendimento da história partindo de
concepções basilares do seu pensamento: 1) a contradição, que em Hegel é do Espírito consigo mesmo, aparece em
Marx e Engels concretamente como luta de
classes; 2) a dialética, que em Hegel é idealista,
em Marx e Engels torna-se materialista.
Meu método dialético, por
seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele, inteiramente oposto.
Para Hegel, o processo do pensamento - que ele transforma em sujeito autônomo
sob o nome de ideia - é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação
externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material
transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado[12].
Como
se vê, é a dialética materialista e a
cosmovisão materialista que nos
permite criticar o entendimento da história como desenvolvimento progressivo da
Ideia e a filosofia “celestial” de Hegel.
Nos
termos do materialismo histórico fundado por Marx e Engels n’A Ideologia Alemã, a análise de
determinada realidade deve ter como foco as relações
sociais de produção, posto que, justamente, permite a satisfação das
necessidades básicas dos homens (comer, beber, vestir-se). Na mesma linha,
pontuo a importância de se considerar a luta
de classes como fundamento de uma totalização
em curso e, simultaneamente, de apreensão das relações sociais concretas.
Possibilita-se dessa maneira enxergar a unidade na diversidade como um processo
de síntese de várias determinações, ou seja, permite conceber o pensamento como
resultado do real[13].
Assim,
uma verdadeira e autêntica educação
dialética, toma como base a realidade, busca compreender nas contradições
sociais da vida a concretude do seu fazer
educativo. Uma educação ativa, dialética, concreta, visa em última
instância sempre a emancipação do
Homem, fazer do homem sujeito e objeto de si mesmo: é uma educação reflexiva, atenta aos problemas da sala
de aula, da escola, da cidade, do estado, do país, do mundo, ao mesmo tempo em
que partindo da realidade problematiza questões e fornece respostas, sempre
parciais, sempre provisórias, mas cada vez mais próximas da realidade.
Feito
isto, todo este pequeno excurso metodológico em diálogo com a autora,
Anastasiou nos apresenta no tópico seis as
operações de pensamento: comparação, resumo, observação, classificação,
interpretação, crítica, busca de suposições, imaginação, obtenção e organização
dos dados, levantamento de hipóteses, aplicação de fatos e princípios a novas
situações, decisão e, por fim, planejamento de projetos e pesquisas. Nas
palavras da própria autora:
Essas operações estão
também presentes nas ações que operacionalizamos com os alunos, nos três
momentos propostos na metodologia dialética: mobilização, construção e
elaboração da síntese do conhecimento, visando ao conhecimento da visão inicial
ou sincrética, à efetivação da análise e à busca de uma síntese
qualitativamente superior (ANASTASIOU, 2005, p. 27).
Todas
estas operações se apropriam da memorização, mas indo além dela. Esse ir além é ir além da “decoreba”, do
conteúdo aprendido pelas regras formais da linguagem. Ir além é buscar uma
educação e uma escola que encarne valores democráticos, ou, melhor ainda, que
esteja em constante processo de democratização[14]. O alunado e o professorado
devem saborear o saber, para fazer um jogo de palavras da autora, a fim de que
suas vivências pessoais e sua relação contratual visem à humanização de si mesmo e dos outros.
No
penúltimo tópico, de número 7, a autora vai tratar dos passos aos momentos. Isso significa que preparação, aplicação,
generalização, simbolização e abstração (os passos),
são momentos importantes do movimento
educativo que deve relacionar a sociabilidade prática do discente e do
docente, a fim de que ambos reelaborem suas práticas sociais. Metodologicamente,
Anastasiou nos escreve que isso passa por três momentos do método dialético: a
mobilização para o conhecimento, a construção do conhecimento e a elaboração da síntese do conhecimento. Dessa
forma, conhecer (saber da existência) nos impulsiona para a constituição
objetiva do conhecimento prático, porque teórico. Teórico, pois problematiza,
critica, historiciza pela práxis numa
busca de totalização desvendar a realidade, identificar a essência da
relação pedagógica: “a interação intencional, planejada e responsável entre
aluno, professor e objeto de conhecimento” (ANASTASIOU, 2005, p. 34).
Por
fim, no último tópico, na busca de uma
síntese possível, a autora faz uma balanço fundamental do que expôs e
confrontou com o processo de ensinagem, a saber: a visão de conhecimento, a
consideração dos limites e possibilidades dos sujeitos atuantes no processo, a
superação da alienação, a construção contínua da metodologia dialética, a busca
dos percursos e a formação profissional continuada. Assim o processo de
ensinagem se direciona para um fazer
solidário e como um “desafio a uma ação docente inovadora e comprometida”
(idem, p. 36).
REFERÊNCIAS
ANASTASIOU,
Léa das Graças Camargos. Ensinar, aprender, apreender e processos de ensinagem.
In: ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos; ALVES, Leonir Pessate (orgs.). Processos de ensinagem na universidade:
pressupostos de trabalho em aula. 5.ed. Joinville, SC: UNIVILLE, 2005. p.11-36.
COUTINHO,
Carlos Nelson. O estruturalismo e a
miséria da razão. 2ªed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
HOBBES,
Thomas. Do Cidadão. TRAD. Fransmar
Costa LIMA. São Paulo: Martin Claret, 2006.
LUKÁCS,
György. Socialismo e democratização:
escritos políticos 1956-1971. Organização, introdução e tradução de Carlos
Nelson Coutinho e José Paulo Netto. 2ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2011.260p.
LUKÁCS, Georg. As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do
Homem. Tradução de Carlos Nelson COUTINHO. Cf.<http://sergiolessa.com/BibliotecaLukacs.html>.
Acesso em 01 set.2012a. p.1-20.
LUKÁCS, G.
O trabalho. In Per una Ontologia
dell’Essere Sociale. Trad. Ivo Tonet. Disponível em < http://sergiolessa.com/BibliotecaLukacs.html>.
Acesso em 01 set. 2012b.
NETTO,
José Paulo. Marxismo Impenitente:
contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004.
MARX,
Karl. O Capital: crítica da economia
política: livro I. Trad. Reginaldo SANT’ANNA. 27ªed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira: 2010.
RODRIGUES,
Mavi. MICHEL FOUCAULT SEM ESPELHOS:
um pensador proto pós-moderno. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro:
UFRJ/ESS, 2006.
SANTOS, Milton.
A Natureza do Espaço: Técnica e
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São Paulo, 2006.
SANTOS,
Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. 15ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SARTRE,
Jean Paul. Questão de Método. São
Paulo: Nova Cultural, 1987.
[1] Geógrafo e Professor de Geografia
do Programa de Educação Pré-Vestibular para Jovens Afrodescendentes “Agadá”. Mestrando em Geografia Humana na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade
e Meio Ambiente (GEDMMA) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Sindicalismo
(NEPS) ambos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Integrante da Rede
Justiça nos Trilhos. E-mail: aj_ramone@hotmail.com
[2] “O processo de trabalho, que descrevemos em seus
elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar
valores-de-uso [sic], de apropriar os elementos naturais às necessidades
humanas; é a condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a
natureza; é condição natural e eterna da vida humana, sem depender, portanto,
de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais”
(MARX, 2010, p.218). O filósofo marxista húngaro György Lukács, na trilha
deixada por Marx, atentou para a centralidade ontológica do trabalho: “A
essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres
vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente
separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da
consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da
reprodução biológica: o produto, diz Marx, é um resultado que no início do
processo existia "já na representação do trabalhador", isto é, de
modo ideal” (LUKÁCS, 2012a, p.5).
[3] É bom deixar claro, como faz Mavi Rodrigues (2006,
p.84) que “A teleologia limita-se a ação humana singular. Além disso, devemos
ter em conta que mesmo reduzida ao agir humano singular, a teleologia abre
alternativas; portanto, ela está associada a efeitos que independem das
intenções conscientes”. Isso significa que a teleologia não pode ser concebida
como algo fechado, um fim da história, mas sim de uma projeção ideal subjetiva
no plano do mundo objetivo, mundo este que independe da consciência
subjetiva/singular/individual do sujeito que realiza o movimento da
prévia-ideação. O filósofo brasileiro Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) assim
dissertou sobre a relação entre teleologia e causalidade: “Com a vida social,
introduziu-se no ser dos processos uma realidade nova, uma nova categoria
ontológica: o ato teleológico. Enquanto na realidade natural ocorre apenas
causalidade, na sociedade a causalidade relaciona-se estreita e organicamente
com a teleologia. O ato teleológico primário, sobre o qual se organiza uma rede
de complexos teleológicos de nível superior, verdadeiras objetividades
teleológicas, é o trabalho econômico” (COUTINHO, 2010, p.87).
[4] Que na visão do geógrafo Milton Santos (2008) nunca
houve, apenas está começando os primeiros ensaios. Quando analisamos tal
observação vemos que Milton pôs a discussão sobre humanidade em seu sentido
mais amplo, no plano da totalidade do homem.
[5] A História, sob o ponto de vista lukacsiano, é a
produção e a reprodução das objetivações humanas ao longo do tempo (NETTO,
2004). Nesse sentido a história da educação deve ser vista pelo prisma da
objetivação, ou seja, de como o ser humano em seu processo de humanização se
apropria de objetos naturais para trazê-los para o campo das significações
objetivas do seu próprio ser. Nessa linha, a educação, enquanto processo de
humanização, faz do homem um “ser educado”. Traduzindo: um ser que
ontologicamente busca se educar na exata medida em que se educa para continuar
se fazendo homem.
[6] “[...] totalização como processo de revelação
dialética, como movimento da Historia e como esforço teórico e prático para
‘situar’ um acontecimento, um grupo, um homem” (SARTRE, 1987, p.158). Na
Geografia, foi Milton Santos (2006, p.76-77) que, baseando-se em Sartre,
atentou para o espaço geográfico como uma totalização, um processo: “A
Totalidade está sempre em movimento, num incessante processo de totalização,
nos diz Sartre. Assim, toda totalidade é incompleta, porque está sempre
buscando totalizar-se. Não é isso mesmo o que vemos na cidade no campo ou em
qualquer outro recorte geográfico? Tal evolução retrata o movimento permanente
que interessa à análise geográfica: a totalização já perfeita, representada
pela paisagem e pela configuração territorial e a totalização que se está
fazendo, significada pelo que chamamos de espaço”.
[7] Nesse sentido, ouso escrever que o processo de
ensinagem pode ser pensado como uma crescente socialização do homem, mas também como um progresso na sociabilidade e nas formas de objetivação desta sociabilidade, seja pelo trabalho (como atestou primariamente
Marx) ou pela arte (como enriqueceu
Lukács). A sociabilidade em questão, na qual a educação é mediação indelével,
põe-se como uma característica ineliminável do próprio ser humano em seu
processo de humanização que é, por seu turno, um processo espaço-temporal (da escola, da sala de aula, dos horários, etc.) na
medida em que os seres humanos travam relações sociais em espaços-tempos
determinados não importando se tais relações ou processos de ensinagem (para o
nosso caso) se dão no campo ou na cidade, na comunidade rural ou no bairro, na
universidade ou na escola. É justamente este processo amplo de desenvolvimento
educativo que relaciona sociabilidades espaços-temporais com formas de
objetivações que conformam o conteúdo do próprio ser humano.
[8] De modo contrário posicionou-se o estruturalista
francês Michel Foucault (1926-1984) em relação à dialética. Nos Ditos e
Escritos IV – Estratégia, Poder-Saber Foucault foi claro: “Não aceito essa
palavra dialética. Não e não! É preciso que as coisas estejam bem claras. Desde
que se pronuncia a palavra 'dialética', se começa a aceitar, mesmo que não se
diga, o esquema hegeliano de tese e da antítese e, com ele, uma forma de lógica
que me parece inadequada, se quisermos dar uma descrição verdadeiramente
concreta desses problemas. Uma relação recíproca não é uma relação dialética
[...] Veja, a palavra 'contradição' tem, em lógica, um sentido particular.
Sabemos bem o que é uma contradição na lógica das proposições. Mas quando se
considera a realidade e se procura descrever e analisar um número importante de
processos, descobre-se que essas zonas de realidade estão isentas de
contradições [...] Tomemos o domínio biológico. Nele encontramos um número
importante de processos recíprocos antagonistas, mas isso não quer dizer que se
trate de contradições. Isso não quer dizer que haja, de um lado do processo
antagonista, um aspecto positivo e, do outro, um aspecto negativo. Penso que é
muito importante compreender que a luta, os processos antagonistas não
constituem, tal como o ponto de vista dialético pressupõe, uma contradição no
sentido lógico do termo [...] Se repito, de modo permanente, que existem
processos como a luta, o combate, os mecanismos antagonistas, é porque
encontramos esses processos na realidade. E não são processos dialéticos” (apud
RODRIGUES, Mavi. MICHEL FOUCAULT SEM
ESPELHOS: um pensador proto pós-moderno. Tese de Doutorado. Rio de
Janeiro: UFRJ/ESS, 2006. p. 154).
Contra Foucault, trago
a bela explanação do filósofo brasileiro Leandro Konder: “Durante séculos, a
hegemonia do pensamento metafísico nos acostumou a reconhecermos somente um
tipo de contradição: a contradição lógica. A lógica, como toda ciência,
ocupa-se da realidade apenas em um determinado nível; para alcançar resultados
rigorosos, ela limita o seu campo e trata de uma parte da realidade. [...] Existem, porém, dimensões da realidade
humana que não se esgotam na disciplina das leis lógicas. Existem aspectos da
realidade humana que não podem ser compreendidos isoladamente: se queremos
começar a entendê-los, precisamos observar a conexão íntima que existe entre
eles e aquilo que eles não são. [...]
As conexões íntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Em tais
unidades, a contradição é essencial: não é um mero defeito do raciocínio. Num
sentido amplo, filosófico, que não se confunde com o sentido que a lógica
confere ao termo, a contradição é
reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os
seres existem. A dialética não se contrapõe à lógica, mas vai além da lógica,
desbravando um espaço que a lógica não consegue ocupar” (KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo:
Brasiliense, 2008. p.46-47).
[9] Faço alusão aqui ao filósofo irracionalista,
anti-dialético e anti-humanista Arthur Schopenhauer: “O mundo é minha
representação. Esta proposição é uma verdade para todo ser vivo pensante,
embora só o homem chegue a se transformar em conhecimento abstrato e refletido.
A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado, pode-se dizer que
nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira certeza de não
conhecer nem um sol nem uma Terra, mas apenas olhos que veem este sol, mão que
tocam esta Terra, em uma palavra, sabe que o mundo que o cerca existe apenas
como representação, em sua relação com um ser que percebe, que é o próprio
homem. Se existe uma verdade que se possa afirmar a priori é esta, pois exprime
o modo de toda experiência possível e imaginável, conceito muito mais geral que
os de tempo, espaço e causalidade que o implicam” (SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação.
Trad. M. F. Sá CORREIA. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. p.9).
[10] Isso não quer dizer que a consciência, por ser
abstrata, não tenha implicações reais. Ora, quando Lukács (2012b) diz que a
consciência deixa de ser um epifenômeno biológico está justamente alertando-nos
para o papel da consciência em servir ao homem, ao ser social. O ser social
progride, pelo desenvolvimento do trabalho, a consciência progride, ou seja, o
homem torna-se cada vez mais consciente de suas realizações. Esse tornar real é
produto do ato teleológico humano-singular mediado pelo trabalho (a práxis
criadora).
[11] CHAUÍ, Marilena. O
que é ideologia. 2ªed. São Paulo: Brasiliense, 2008.
[12] MARX, Karl. O
Capital: crítica da economia política: livro I. Trad. Reginaldo SANT’ANNA.
27ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2010.p.28.
[13] MARX, Karl. Contribuição
à crítica da economia política. 2ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1973.
[14] Lukács (2011, p.85) entendia a democratização como um
processo ontológico, pois para o mestre húngaro “trata-se sobretudo de um
processo e não de uma situação estática”. Mais a frente (idem, p.111) o
filósofo marxista nos escreve que a democracia socialista é “o órgão desta
auto-educação do homem (na perspectiva histórico-universal, ou seja, da
auto-educação para ser efetivamente homem no sentido de Marx)”. Ademais, na
página 117, Lukács anota: “a tarefa da democracia socialista é penetrar
realmente na inteira vida material de todos os homens, desde a cotidianidade,
até as questões decisivas da sociedade; é dar expressão à sua sociabilidade
enquanto produto da atividade pessoal de todos os homens”. E quando fala de
educação mesmo, o mestre húngaro não é menos brilhante: “a educação pode deixar
de ser uma superestrutura produzida automaticamente em certo grau de
desenvolvimento econômico para transformar-se assim em fator de ampliação e
aprofundamento da vida individual de cada indivíduo, em força social criada
pelo homem consciente, força que, em sua real sociabilidade, faz com que a
redução do tempo de trabalho necessário para própria reprodução torne cada pessoa
capaz de produzir o que Marx chamava de ‘supérfluo’ e de se apropriar deste
‘supérfluo’ para construir e aperfeiçoar a si mesmo” (idem, p. 142).
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