“Quanto mais a
produção se baseia no valor de troca e, em consequência, na troca, tanto mais
importantes se tornam para ela as condições físicas da troca – meios de
comunicação e transporte. É da natureza do capital mover-se para além de todas
as barreiras espaciais. A criação das condições físicas da troca – de meios de
comunicação e transporte – devém uma necessidade para o capital em uma dimensão
totalmente diferente – a anulação do espaço pelo tempo”
Entre 1857-1858, na Inglaterra,
Karl Marx (1818-1883) redigia os famosos Grundrisse,
que ficaram conhecidos como os esboços para sua magnum opus: O capital. A passagem por mim aludida chama
atenção pelo fato de Marx conseguir reproduzir teoricamente-cientificamente o
movimento real que o capital realiza em sua busca por valorização. Não
obstante, a mencionada citação, também refere-se à uma dimensão particular do
movimento do capital: a anulação espacial pelo tempo. Ao contrário do que uma
leitura apressada poderia sugerir, a anulação
do espaço pelo tempo não implica no cancelamento do espaço enquanto
premissa do desenvolvimento desigual do capitalismo, mas sim quer mostrar que a
anulação – ou, poderíamos dizer
melhor, o recuo – é uma tendência do próprio capital em seu
movimento de valorização. Ou seja, o capital precisa fazer recuar as barreiras
espaciais para reduzir o tempo de sua valorização. O meio pelo qual o capital
faz isso Marx deixara bem claro: meios de comunicação e transporte. Esses meios
de comunicação e transporte que fazem recuar as barreiras espaciais para a
valorização do capital tornam, de fato, o mundo mais “curto”, o planeta Terra
“menor” do que era antes, tal como percebeu o escritor francês Júlio Verne
(1828-1905) em sua célebre A volta ao
mundo em 80 dias:
“Nem imagino – respondeu Andrew Stuart – mas,
definitivamente, a terra é grande demais.
- Ela era antigamente... – disse baixinho Phileas
Fogg. [...].
A discussão foi suspensa durante duas partidas
seguidas. Mas logo Andrew Stuart voltou ao assunto dizendo: - Como assim antigamente? A terra diminuiu
por acaso?
- Sem dúvida – respondeu Gauthier Ralph. – Sou da
opinião do Sr. Fogg. A terra diminuiu, porque podemos percorrê-la atualmente
dez vezes mais depressa que há cem anos. [...]
Contudo, Stuart estava incrédulo e não estava
convencido, e a partida terminou: - É preciso confessar, Sr. Ralph – ele voltou
a dizer – que o senhor encontrou uma forma engraçada de dizer que a terra
diminuiu, porque agora é possível dar a volta ao mundo em três meses.
- Em 80 dias
somente – disse Phileas Fogg.
A volta ao mundo em 80 dias foi publicada por Júlio
Verne em 1873, mas a história se passa em 1872, ou seja, na segunda metade do
século XIX, portanto, no mesmo quadro temporal em que Marx escrevia os Grundrisse.
A
passagem que transcrevi da obra de Verne foi a que mais me chamou a atenção em
todo livro. Isso porque ela me remeteu diretamente ao raciocínio de Marx acerca
da anulação do espaço pelo tempo. Em
Marx a anulação do espaço pelo tempo
detém um alcance espacial-mundial da
tendência de desenvolvimento do capital. Verne chega a mesma conclusão, digamos
assim, mas utiliza a literatura como instrumento de captura das mudanças
espaço-temporais que a sociedade burguesa atravessa no século XIX. Tem-se a
ciência e a literatura capturando a mesma objetividade pelas lentes de Marx e
Verne.
Em
Verne, ao longo de toda obra, lá estão “as condições físicas da troca” que Marx
referencia. Phileas Fogg, personagem principal da trama verniana, utiliza os
“meios de comunicação e transporte” possíveis para dar a volta ao mundo em 80 dias: ferrovia e navio para sair de Londres
à Suez; vai de navio para Bombaim; de ferrovia para Calcutá; de navio para Hong
Kong, Yokohama e São Francisco; ferrovia pra Nova York; e navio e ferrovia para
retornar a Londres em 79 dias!
Todos
estes meios de comunicação e transporte que o capital engendra para fazer
anular as barreiras espaciais em seu movimento de valorização, tal como Marx
entendeu, são simultaneamente os meios de comunicação e transporte que Verne
utiliza para romancear a aventura de Phileas Fogg. É isso que permite Verne
afirmar, pela vocalização de Fogg, que grande a Terra “era antigamente”. A
diminuição da Terra, ou melhor, a compressão espaçotemporal realizada pelo
movimento do capital em busca de valorização faz com que experimentemos o tempo
e o espaço de maneira distinta do que era antes. E é justamente aí que o
geógrafo marxista David Harvey nos oferta uma contribuição fundamental.
Vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas
culturais, bem como político-econômicas, desde mais ou menos 1972.
Essa mudança abissal está vinculada à emergência de
novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espaço.
Embora a
simultaneidade nas dimensões mutantes do tempo e do espaço não seja prova de
conexão necessária ou causal, podem-se aduzir bases a priori em favor da proposição de que há algum tipo de relação
necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de
modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de “compressão do
tempo-espaço” na organização do capitalismo.
131
anos depois que Marx compreendia anulação
do espaço pelo tempo, 116 anos depois que Verne romanceava a aventura de
Phileas Fogg salientando que grande a Terra “era antigamente”, Harvey
re-observa o quanto o nosso planeta “diminuiu” graças ao movimento do capital.
Os navios e a ferrovias que encurtavam o mundo à época de Marx e Verne parecem
hoje lentos e atrasados perto dos aviões do tempo-espaço de Harvey que fazem a
volta ao mundo em pouco mais de 40 horas! Mas a lógica é a mesma que a dos
tempos do alemão e francês: a geografia histórica do capitalismo mostra que o
capital acelera sua velocidade de rotação e reduz as barreiras espaciais.
Harvey conserva Marx e Verne ao
mostrar que o espaço não pode ser uma
barreira ao tempo do capital (ou ao tempo de Phileas Fogg); não obstante, os supera (sempre conservando, é bom deixar
claro) mostrando que o próprio capital não
tolera que o tempo seja uma barreira ao seu movimento espacial (a aventura de Fogg é também uma prova de que o tempo não
pode ser um obstáculo ao espaço).
Harvey,
como se sabe, é um leitor assíduo de Marx e, criativamente, a partir da leitura
do livro II de O capital, conseguiu
capturar cientificamente o movimento contemporâneo do capital, o que só atesta
a imensa atualidade do velho barbudo.
Não
é possível dizer que Harvey tenha lido Júlio Verne: em todas obras que li do
geógrafo não recordo que Verne tenha sido citado; sem embargo, Harvey apreende
pela lógica científica, de uma disciplina particular – a Geografia – aquilo que
Verne havia apreendido pela literatura. A geografia literária de Verne não é
mesma literatura geográfica de Harvey, claro está; todavia, ambos, cada um à
sua maneira, seja pela literatura ou pela ciência, enriqueceram a forma pela
qual a Humanidade se mostra e consubstanciam a forma pela qual a mesma
humanidade captura sua objetividade.
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