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São Luís, Maranhão, Brazil
Homem simples e comum: procuro ser gentil com as pessoas, amigo dos meus amigos e bondoso com a minha família. Sou apaixonado por filmes, internet, livros, futebol e música. Estou tentando sempre equilibrar corpo e mente, manter-me informado das notícias a nível mundial, ministrar aulas de geografia em paralelo às pesquisas acadêmicas que desenvolvo e, no meio de tudo isso, tento achar tempo para o lazer e o namoro. Profissionalmente,sou geógrafo e professor de Geografia no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Maranhão (IFMA ­ Campus Avançado Porto Franco) e Doutorando em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e do Núcleo de Estudos do Pensamento Socialista Pesquisa do Sindicalismo (NEPS), ambos da UFMA. Participo da Rede Justiça nos Trilhos.

domingo, 16 de abril de 2017

MARX, VERNE, HARVEY


Quanto mais a produção se baseia no valor de troca e, em consequência, na troca, tanto mais importantes se tornam para ela as condições físicas da troca – meios de comunicação e transporte. É da natureza do capital mover-se para além de todas as barreiras espaciais. A criação das condições físicas da troca – de meios de comunicação e transporte – devém uma necessidade para o capital em uma dimensão totalmente diferente – a anulação do espaço pelo tempo

Entre 1857-1858, na Inglaterra, Karl Marx (1818-1883) redigia os famosos Grundrisse, que ficaram conhecidos como os esboços para sua magnum opus: O capital. A passagem por mim aludida chama atenção pelo fato de Marx conseguir reproduzir teoricamente-cientificamente o movimento real que o capital realiza em sua busca por valorização. Não obstante, a mencionada citação, também refere-se à uma dimensão particular do movimento do capital: a anulação espacial pelo tempo. Ao contrário do que uma leitura apressada poderia sugerir, a anulação do espaço pelo tempo não implica no cancelamento do espaço enquanto premissa do desenvolvimento desigual do capitalismo, mas sim quer mostrar que a anulação – ou, poderíamos dizer melhor, o recuo – é uma tendência do próprio capital em seu movimento de valorização. Ou seja, o capital precisa fazer recuar as barreiras espaciais para reduzir o tempo de sua valorização. O meio pelo qual o capital faz isso Marx deixara bem claro: meios de comunicação e transporte. Esses meios de comunicação e transporte que fazem recuar as barreiras espaciais para a valorização do capital tornam, de fato, o mundo mais “curto”, o planeta Terra “menor” do que era antes, tal como percebeu o escritor francês Júlio Verne (1828-1905) em sua célebre A volta ao mundo em 80 dias:

“Nem imagino – respondeu Andrew Stuart – mas, definitivamente, a terra é grande demais.
- Ela era antigamente... – disse baixinho Phileas Fogg. [...].
A discussão foi suspensa durante duas partidas seguidas. Mas logo Andrew Stuart voltou ao assunto dizendo:  - Como assim antigamente? A terra diminuiu por acaso?
- Sem dúvida – respondeu Gauthier Ralph. – Sou da opinião do Sr. Fogg. A terra diminuiu, porque podemos percorrê-la atualmente dez vezes mais depressa que há cem anos. [...]
Contudo, Stuart estava incrédulo e não estava convencido, e a partida terminou: - É preciso confessar, Sr. Ralph – ele voltou a dizer – que o senhor encontrou uma forma engraçada de dizer que a terra diminuiu, porque agora é possível dar a volta ao mundo em três meses.
 - Em 80 dias somente – disse Phileas Fogg.

A volta ao mundo em 80 dias foi publicada por Júlio Verne em 1873, mas a história se passa em 1872, ou seja, na segunda metade do século XIX, portanto, no mesmo quadro temporal em que Marx escrevia os Grundrisse.
A passagem que transcrevi da obra de Verne foi a que mais me chamou a atenção em todo livro. Isso porque ela me remeteu diretamente ao raciocínio de Marx acerca da anulação do espaço pelo tempo. Em Marx a anulação do espaço pelo tempo detém um alcance espacial-mundial da tendência de desenvolvimento do capital. Verne chega a mesma conclusão, digamos assim, mas utiliza a literatura como instrumento de captura das mudanças espaço-temporais que a sociedade burguesa atravessa no século XIX. Tem-se a ciência e a literatura capturando a mesma objetividade pelas lentes de Marx e Verne.
Em Verne, ao longo de toda obra, lá estão “as condições físicas da troca” que Marx referencia. Phileas Fogg, personagem principal da trama verniana, utiliza os “meios de comunicação e transporte” possíveis para dar a volta ao mundo em 80 dias: ferrovia e navio para sair de Londres à Suez; vai de navio para Bombaim; de ferrovia para Calcutá; de navio para Hong Kong, Yokohama e São Francisco; ferrovia pra Nova York; e navio e ferrovia para retornar a Londres em 79 dias!
Todos estes meios de comunicação e transporte que o capital engendra para fazer anular as barreiras espaciais em seu movimento de valorização, tal como Marx entendeu, são simultaneamente os meios de comunicação e transporte que Verne utiliza para romancear a aventura de Phileas Fogg. É isso que permite Verne afirmar, pela vocalização de Fogg, que grande a Terra “era antigamente”. A diminuição da Terra, ou melhor, a compressão espaçotemporal realizada pelo movimento do capital em busca de valorização faz com que experimentemos o tempo e o espaço de maneira distinta do que era antes. E é justamente aí que o geógrafo marxista David Harvey nos oferta uma contribuição fundamental.

Vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas culturais, bem como político-econômicas, desde mais ou menos 1972.
Essa mudança abissal está vinculada à emergência de novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espaço.
Embora a simultaneidade nas dimensões mutantes do tempo e do espaço não seja prova de conexão necessária ou causal, podem-se aduzir bases a priori em favor da proposição de que há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de “compressão do tempo-espaço” na organização do capitalismo.

131 anos depois que Marx compreendia anulação do espaço pelo tempo, 116 anos depois que Verne romanceava a aventura de Phileas Fogg salientando que grande a Terra “era antigamente”, Harvey re-observa o quanto o nosso planeta “diminuiu” graças ao movimento do capital. Os navios e a ferrovias que encurtavam o mundo à época de Marx e Verne parecem hoje lentos e atrasados perto dos aviões do tempo-espaço de Harvey que fazem a volta ao mundo em pouco mais de 40 horas! Mas a lógica é a mesma que a dos tempos do alemão e francês: a geografia histórica do capitalismo mostra que o capital acelera sua velocidade de rotação e reduz as barreiras espaciais. Harvey conserva Marx e Verne ao mostrar que o espaço não pode ser uma barreira ao tempo do capital (ou ao tempo de Phileas Fogg); não obstante, os supera (sempre conservando, é bom deixar claro) mostrando que o próprio capital não tolera que o tempo seja uma barreira ao seu movimento espacial (a aventura de Fogg é também uma prova de que o tempo não pode ser um obstáculo ao espaço).
Harvey, como se sabe, é um leitor assíduo de Marx e, criativamente, a partir da leitura do livro II de O capital, conseguiu capturar cientificamente o movimento contemporâneo do capital, o que só atesta a imensa atualidade do velho barbudo.

Não é possível dizer que Harvey tenha lido Júlio Verne: em todas obras que li do geógrafo não recordo que Verne tenha sido citado; sem embargo, Harvey apreende pela lógica científica, de uma disciplina particular – a Geografia – aquilo que Verne havia apreendido pela literatura. A geografia literária de Verne não é mesma literatura geográfica de Harvey, claro está; todavia, ambos, cada um à sua maneira, seja pela literatura ou pela ciência, enriqueceram a forma pela qual a Humanidade se mostra e consubstanciam a forma pela qual a mesma humanidade captura sua objetividade.

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