Alguém devia ter caluniado Josef
K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã (KAFKA, O processo).
É com estas palavras que o
escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) inicia seu famoso romance O processo, publicado postumamente em
1925. No escrito kafkiano, Josef K – um funcionário de banco – é detido, no seu
trigésimo aniversário, e processado sem sequer saber o que lhe ocorrera para
ser submetido a tal prática. Mais do que sem saber, K é condenado inocentemente.
92 anos depois, a epígrafe é
reescrita: “Alguém devia ter caluniado Saulo Pinto Silva” pois sem que tivesse
feito mal algum o professor de economia da Universidade Federal do Maranhão foi
caluniado no Facebook por ter
supostamente incentivado a violência física contra grupos religiosos.
O fato era que o prof. Saulo
Silva satirizava o Projeto de Lei 8429/2017 do deputado federal e pastor
Franklin Lima (PP-MG) que dispõe sobre obrigatoriedade das rádios públicas a
tocarem nas suas programações diárias música religiosa nacional.
Na sátira, Saulo Silva escreveu:
“Quanto aos fundamentalistas religiosos uma dose permanente de pauladas na
cabeça é o melhor antídoto contra imbecis/estúpidos”. Foi esse trecho que gerou
o furor nos conservadores.
Lida ao pé da letra, e não no
seu caráter irônico, o post de Saulo
Silva foi printado e propagou-se pelo
Facebook e demais canais de
comunicação, como o Jornal Pequeno. A exposição na citada rede social combinada
com o conservadorismo tornaram vítima fácil da calúnia o prof. Saulo. E talvez
seja isso mesmo o que há de mais assustador nessa história inteira: a potência
da calúnia nos tempos de Facebook.
Saulo não foi detido, mas foi
caluniado sem que tivesse feito mal algum, literalmente. Mas também,
literalmente, a calúnia reverberou na rede de Mark Zuckerberg sem que fosse
possível se identificar a origem: estamos diante da origem oculta da calúnia. Porém,
se a calúnia tem uma origem oculta sabe-se quem a proliferou. E os
caluniadores realizam o avesso do dito marxiano: “eles sabem e ainda assim o
fazem”. A perversidade da calúnia reside justamente nisso: a consciência do ato
de caluniar, difamar; o terror causado pelo dano, praticamente, irreversível.
K desconhece a causa do
processo, mas Saulo sabe muito bem a causa da calúnia: seu posicionamento
político seja na perigosa exposição no Facebook, na sua prática docente ou ainda na militância. Os
funcionários de baixo escalão que vigiam K por dez horas diárias, e são pagos
por isso, encontram seus correspondentes hodiernos em conservadores de plantão.
Só resta saber se esses conservadores, além de vigiarem e não entenderem de
sátiras/ironias, também são pagos...
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