Em 05 de novembro
de 2015 a vida de milhares de pessoas e comunidades foi profundamente
violentada. A lama de minério da empresa Samarco (joint venture da
Vale S.A. e BHP Billiton) destruiu casas, memórias, sonhos, modos de vida,
relações sociais, causando o maior desastre socioambiental do Brasil. A lama da
cobiça do lucro desenfreado ceifou a vida de 19 pessoas e modificou para sempre
a realidade de milhares de pessoas que vivem de Mariana (MG) a Regência (ES).
Após um ano do
crime da Samarco/Vale/BHP a situação permanece crítica. Pouco foi feito para
atender os atingidos e atingidas e para compensar ou mitigar os incalculáveis
impactos ambientais ao longo da Bacia do Rio Doce. A captação e a qualidade da
água ainda continuam sendo um problema para os mais de 35 municípios atingidos.
Órgãos públicos não têm sido capazes de fazer um monitoramento adequado de toda
a água e lama em pontos diferentes da bacia e com regularidade,
disponibilizando publicamente laudos efetivos sobre as condições da água e as
possibilidades de contaminação. Deste modo, comunidades inteiras, pessoas que
viviam da pesca e da agricultura perderam seu modo principal de reprodução
econômica e social.
Agricultores
familiares, quilombolas e indígenas ainda lutam para terem seus direitos
reconhecidos e garantidos. Na maior parte dos distritos atingidos da Bacia do
Rio Doce, a presença da Samarco é mais forte do que a de órgãos públicos, como
Prefeituras Municipais, Defensoria e Ministério Públicos. Deste modo, a empresa
encontra espaço para dividir comunidades e fazer valer as suas próprias leis. A
própria empresa autora da tragédia é hoje responsável por definir quem serão as
pessoas, atingidos e atingidas, que terão direito às indenizações.
O acordo assinado
entre as empresas Samarco, Vale e BHP, os estados de Minas Gerais e Espírito
Santo e governo federal foi fruto da força das empresas e do interesse do
Estado em acelerar supostas medidas de reparação e esconder suas
responsabilidades. A influência política das empresas e a cumplicidade do
Estado tentaram afirmar um acordo minimalista de mitigação dos impactos, que
ignorou a participação das vítimas desse grande desastre e seus maiores
interessados. O Superior Tribunal de Justiça suspendeu esse acordo, mas a
Samarco permanece tendo poder de definição das medidas a serem implementadas e
quais pessoas serão contempladas por elas. Relevante destacar que em outubro
deste ano o Ministério Público Federal (MPF) apresentou denúncia requerendo a
instauração de ação penal contra 22 pessoas e quatro empresas (Samarco, Vale,
BHP Billiton e VogBR[1]) por diversos crimes[2] relacionados ao rompimento da
barragem. Conforme a denúncia dos Procuradores da República da “Força Tarefa
Rio Doce”, as empresas devem ser responsabilizadas criminalmente já que a
barragem apresentava sinais claros de que poderia se romper.
Neste cenário, a
empresa Vale S.A. vem buscando de todas as formas se isentar da
responsabilidade com a tragédia. A empresa, além de acionista da Samarco,
conjuntamente com a BHP, possui controle operativo da Samarco, o que lhe coloca
em um papel de destaque nas próprias decisões internas da empresa em relação a
sua estratégia de gestão e a continuidade de operação das barragens. A Vale
ainda é acusada pela Polícia Federal de alterar, diversas vezes, seus
relatórios entregues ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) com o
objetivo de declarar uma quantidade menor de rejeitos lançados na barragem de
Fundão. Segundo investigação, o total de rejeitos líquidos jogados na barragem
de Fundão, em 2014, passou de 18 milhões de metros cúbicos, sendo a Vale
responsável por 28% desse total. Entretanto, a mesma declarou na época que era
responsável por somente 5% do total de rejeitos depositados.
Com todo esse
esforço de ocultação de responsabilidade a Vale S.A. busca deslocar sua imagem
do maior crime socioambiental do país. Ao longo dos últimos anos, as críticas
sobre os impactos socioambientais provocados pela mineração conquistaram um
importante espaço no debate político internacional. Neste sentido, em 2012 a
Vale recebeu o prêmio de pior corporação do mundo como reconhecimento das suas
diversas práticas violadoras de direitos humanos[3].
Inúmeros fatos e
dados apresentados pela sociedade civil em diversos países ajudaram a
consolidar a constatação de que não há mineração sem desastre. Isso, no ponto
de vista das empresas, passou a representar um risco não apenas à sua reputação
e aos seus negócios, mas à própria sobrevivência do setor de mineração como um
todo. Como forma de antecipação a esse risco, a Vale, assim como as principais
empresas do setor, vem se esforçando para transmitir à opinião pública a imagem
de empresa que respeita o meio ambiente e as comunidades atingidas, dando a
essa postura o nome de estratégia de sustentabilidade e responsabilidade
social.
Entretanto, no
próprio mundo corporativo, as reações têm sido firmes. Os escritórios de
advocacia Bronstein, Gewitz & Grossman, Bernstein Liebhard e Rosen Law Firm
propuseram ações coletivas contra a mineradora Vale. Nos três casos são
alegadas possíveis violações da lei do mercado de capital dos Estados Unidos
pelo fato de a empresa ter divulgado informações falsas sobre seus negócios e
pedem o ressarcimento dos prejuízos dos acionistas. A BM&F Bovespa
anunciou, em 26 de novembro de 2015, que a Vale, empresa que tem o maior peso
na composição da carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) que
está em vigor, ficaria fora da nova lista de empresas sustentáveis após
presença por cinco anos consecutivos. Preocupadas, a Vale, a BHP Billiton e a
Samarco, responsáveis pela tragédia, estão mais concentradas em contornar os
efeitos do desastre sobre as suas imagens públicas do que com o enfrentamento
dos problemas que causaram sobre o ambiente e as populações atingidas.
Em escala mundial,
a empresa Vale – assim como boa parte de suas concorrentes – tem conseguido
enfrentar a diminuição progressiva do preço do minério de ferro sem perdas.
Isso está acontecendo graças à redução dos custos de gestão dos processos em
operação e dos projetos em via de instalação. Assim, a crise do preço de
minério vem sendo compensada às custas das comunidades, do meio ambiente e dos
trabalhadores, em termos de menor segurança, menor qualidade de vida e de
trabalho, terceirização e menor controle das responsabilidades empresariais.
Esta estratégia
está integralmente ligada às causas que levaram ao rompimento da barragem de
Fundão. Ao optarem pelo modelo de barragem mais precário (no lugar de rochas e
britas, foi usado o próprio rejeito como sustentação), atrelado a
intensificação do processo de extração, assim, criando a necessidade de
construção de mega barragens, e rejeitando um Plano de Ações Emergencial mais
detalhado por considerarem o mesmo mais caro, há evidências claras de que as
empresas sabiam do perigo de um rompimento e não tomaram as providências
necessárias para modificar a probabilidade do desastre.
Mesmo diante da
magnitude do crime da Samarco/Vale/BHP o Estado brasileiro segue conivente com
o modus operandi das empresas mineradoras. Ao longo deste ano
aprovou a barragem da Vale, “Maravilhas III”, em Minas Gerais, com capacidade
três vezes maior do que a de Fundão. Além disso, houve a aprovação em Minas
Gerais do Projeto de Lei nº 2946/2015, que alterou radicalmente o sistema e a
política ambiental desse estado para “destravar” e agilizar licenciamentos
ambientais. Ressalta-se ainda a tentativa constante do governo federal de
aprovar o Novo Código Mineral do país, que acirrará ainda mais as impactos
ambientais, sociais e as disputas por recursos como terra, água e energia entre
as empresas e as populações.
Ainda quanto às
reformas no campo normativo, convém destacar também o perigo representado pelo
Projeto de Lei 1.610/1996, que pretende regulamentar a mineração em terras
indígenas e pela Proposta de Emenda à Constituição 215, que busca transferir a
decisão final da demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo
e proíbe a ampliação de terras já delimitadas, intensificando os conflitos.
Todo esse cenário
está ligado a um Estado que se mostra incapaz de garantir a segurança e
estabilidade dos empreendimentos e de suas barragens. A estratégia de
intensificação da extração mineral no país vem atrelada à constante
precarização dos órgãos estatais reguladores. Deste modo, há a possibilidade
concreta de que novos casos como o crime da Bacia do Rio Doce ocorram em outros
lugares do país.
Após um ano da
tragédia, a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale S.A.
reafirma que o desastre da Samarco/Vale/BHP não pode ser entendido como um caso
isolado e sim mais uma tragédia do setor da mineração. Ao longo dos anos, temos
denunciado muitas tragédias provocadas pela mineração da Vale S.A. sobre a vida
de pessoas, comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, camponesas e de
populações urbanas empobrecidas. Em diferentes partes do Brasil e do mundo, de
Mariana (MG) a Tete (Moçambique), de Santa Cruz (Rio de Janeiro) a Piquiá
(Açailândia/MA), de Perak (Malásia) a Sudbury (Canadá), de Canaã dos Carajás
(PA) a Piura (Peru), as semelhanças entre narrativas sobre os impactos são o
testemunho da insustentabilidade da Vale S.A. e também de todo o setor da
mineração.
No marco de um ano
do crime, membros da Articulação Internacional participaram de diversas
atividades ao longo do Rio Doce. Partindo de Regência (ES) no dia 31 de outubro
de 2016 até chegar em Bento Rodrigues no dia 05 de novembro, acompanhamos uma
Caravana que juntou pessoas do Brasil e do mundo para, no caminho inverso da
lama, sentir de perto os estragos causados pelo desastre criminoso. Os
objetivos da participação de membros da Articulação nessa caravana foram
os de contribuir ativamente com denúncias de violações de direitos, ampliar as
articulações em redes cosmopolíticas de luta antimineração, desvelar histórias
mal contadas e camufladas pela empresa, e compreender mais profundamente os
mecanismos de controle e gestão da crítica social implementados pela Samarco e
suas parceiras no intuito de frear e conter a organização popular para
reivindicação de direitos violados recorrentemente, mesmo após 01 ano do
ocorrido. Estiveram presentes pessoas de mais de 15 estados do Brasil, além de
parceiros e atingidos de outros países da América Latina e também da América do
Norte.
Para, nós, da
Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale é fundamental
que:
(1) a Justiça
Federal receba prontamente a denúncia apresentada pelo MPF e promova a ação
penal de forma célere para que ao final sejam as pessoas físicas e jurídicas
acusadas pelo MPF exemplarmente condenadas pelos crimes cometidos;
(2) a definição
sobre quem foi atingido pelo crime e sobre a intensidade dos danos a serem
reparados não fique a cargo das empresas tidas como responsáveis pela tragédia;
(3) a legislação
nacional seja aprimorada a fim de que sejam reconhecidos os direitos dos
atingidos e atingidas por projetos de mineração e barragens;
(4) o Estado
brasileiro promova um novo modelo extrativo, com o protagonismo de comunidades
e trabalhadores na definição dos ritmos, taxas e locais de mineração;
(5) seja
reconhecido e definitivamente interrompido o modus operandi de
violações sistemáticas de direitos comumente aplicado pela Vale e que também
está presente no crime da Samarco/Vale/BHP;
(6) sejam tomadas
medidas para evitar que outras Marianas aconteçam às escondidas ou
“gota-a-gota”, nas diversas regiões do mundo onde a empresa Vale opera
diretamente ou através de suas coligadas ou joint-ventures;
(7) não se permita
que o interesse minerário se sobreponha a interesses verdadeiramente sociais
como a reforma agrária, os direitos ao acesso à terra, à saúde, à moradia
digna, de ir e vir, entre outros.
(8) sejam
respeitados os direitos e aplicadas as normas previstas na Convenção nº169 da
OIT, ratificada pelo Brasil há mais de 10 anos, em especial quanto à consulta
para averiguação sobre o consentimento livre, prévio e informado. Isto para que
populações atingidas por todo e qualquer empreendimento, inclusive minerário,
possam intervir diretamente no projeto, inclusive na sua aprovação. Entendemos
que o mecanismo de audiências públicas previsto na legislação ambiental, por si
só, não se faz suficiente diante da maquiagem democrática plasmada nestas
arenas como estratégia do capital econômico e do Estado para o represamento de
diálogos críticos e combativos pelas populações atingidas;
(9) que o Estado
brasileiro decrete a caducidade de todas as concessões minerárias e revogue
todas as licenças ambientais concedidas à Samarco Mineração S.A. a fim de que
ela jamais volte a operar no território nacional, uma vez já ter demonstrado
não possuir condições mínimas para operar com segurança e tampouco para assumir
a responsabilidade e remediar eficazmente os danos causados pelo trágico evento
de 05 de novembro de 2015.
Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale S.A.
06 de novembro de
2016
[1]A empresa de
consultoria VOGBR Recursos Hídricos e Geotecnia LTDA foi também denunciada,
acusada de apresentação de laudo ambiental falso.
[2]O MPF requer a
condenação das pessoas físicas e jurídicas pelos crimes de homicídio
triplamente qualificado, lesão corporal, inundação, desabamento/desmoronamento
e uma série de outros crimes previstos na legislação ambiental.
[3]Prêmio “Public
Eyes Award 2012” (http://www.publiceye.ch/en/ranking/).
–
O retrato do casal
e o escudo do time do coração resistiram na parede do lar destruído. Foto de
Márcia Foletto / O Globo
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