Por André
Duchiade, no The Intercept
Brasil
Seguranças que
atuam em uma propriedade da mineradora Vale no município de Canaã
dos Carajás, no sudeste do Pará, foram indiciados por lesão corporal após um
conflito com fazendeiros da região. Os agricultores Jorge Martins dos Santos,
46, e seu filho Thiago Sales dos Santos, 24, contam que, na última
segunda-feira, faziam, juntamente com outros trabalhadores rurais, reparos em
uma cerca de arame que separa a propriedade da família da linha de ferro da
mineradora, quando foram agredidos com socos, pontapés, spray de pimenta e coronhadas
por ao menos oito seguranças da empresa Prosegur, a serviço da Vale.
A cerca está em
área da mineradora, mas, segundo a família, a empresa não cumpriu com uma
obrigação judicial de separar os dois terrenos, o que teria provocado a fuga de
animais dos fazendeiros. A Vale alega que eles invadiram a propriedade da
empresa e que seus seguranças agiram em legítima defesa. Desde sua chegada à
região, a empresa é acusada de uma série de práticas abusivas e ilegais.
Segundo Jorge, em
2014, uma ação judicial determinou que a Vale deveria construir uma cerca para
separar os terrenos. “Eles nunca fizeram isso, então nós mesmos fomos reparar
uma outra cerca que existe lá desde que o proprietário do terreno era outro,
para impedir que os animais fujam para a estrada”, disse. De 2014 a 2017, o
agricultor fez cinco boletins de ocorrência se queixando do roubo de animais, e
afirma ter perdido até 22 vacas de uma só vez.
De acordo com o
relato de Jorge, enquanto eles faziam os reparos, chegou uma caminhonete
dizendo que eles eram invasores e que estavam dentro de propriedade da Vale.
“Minha mulher foi pegar os documentos em casa para mostrar a obrigação da
empresa, mas então parou outra caminhonete, de onde desceram vários homens
encapuzados, que começaram a agredir a mim e a meu filho, enquanto todos os
empregados se deitaram no chão. Meu filho ao me ver sendo agredido chegou a
reagir e acertar um deles, mas apanhou ainda mais por isso.” Jorge conta que
Thiago teve convulsões e desmaiou, e que, depois disso, foram amarrados e
postos em um carro, onde continuaram a ser agredidos. Ele relata ainda ter
recebido ameaças de morte.
A Vale, por meio de
nota, afirma que os fazendeiros realizaram uma “tentativa de invasão”,
construindo a cerca dentro de terreno da empresa. A mineradora diz ainda que
seus seguranças abordaram os fazendeiros pacificamente, apenas agindo em
legítima defesa após terem sido agredidos por Thiago – que teria ferido o nariz
de um segurança – e se limitando a conter “a agressão e a continuidade da invasão
do imóvel”.
A empresa também
afirma que a cerca já foi instalada, mas foi “quebrada cinco vezes pelo
fazendeiro e por pessoas a seu mando”, com o intuito de invadir as terras.
Segundo a Vale, o caso foi registrado na polícia e não há nenhuma pendência entre
as partes. A empresa de segurança Prosegur, por sua vez, reforça que sua equipe
agiu em legítima defesa durante a ação, realizada para “evitar uma invasão
criminosa”. A companhia também ressalta “que todos os seus colaboradores passam
por treinamentos e capacitação específicos de acordo com a operação a ser
executada”.
Caldeirão de
conflitos
O episódio é o
conflito mais recente em uma região marcada há décadas por litígios agrários
entre latifundiários e posseiros e distante apenas 100 quilômetros de Eldorado
dos Carajás, onde em 1996 ocorreu o massacre de 19
trabalhadores sem-terra. Em dezembro, a cidade de Canaã dos
Carajás viu a inauguração de mais um fator complicador deste cenário, a mina S11D, ou,
nas palavras da Vale, “o maior projeto de mineração de sua história e da
indústria da mineração”.
A empresa pretende
explorar até 90 milhões de toneladas de minério de ferro por ano no
empreendimento, e diz em sua
divulgação “que o futuro há de ser muito melhor”. Com discurso
totalmente oposto ao da empresa, no entanto, trabalhadores rurais, líderes
sindicais e ativistas denunciam um modelo de exploração não sustentável,
baseado na atração de trabalhadores sem que haja condições para recebê-los, na
apropriação de terras por práticas questionáveis, em crimes socioambientais e
nas intimidações a vozes dissonantes.
“Acompanhamos
grandes conflitos agrários nesta região desde a década de 1980, onde tínhamos
posseiros de um lado e grandes proprietários, com todas suas infiltrações no
poder público, de outro”, afirma Raimundo Gomez da Cruz Neto, conhecido como
Raimundinho, do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular
(Cepasp), que auxilia trabalhadores sem-terra. “Desde os anos 2000, no entanto,
com a chegada da mineração, essa região virou um caldeirão de conflitos. Esse
que aconteceu é só mais um”, diz.
Compras de terrenos
A área do Grande
Carajás concentra a maior reserva de minério de alto teor de ferro do mundo,
além de contar com reservas de outros metais como cobre, níquel e bauxita.
Segundo a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc),
Alessandra Cardoso, isto torna a área muita estratégica para a indústria
minerária. “Devido ao seu potencial riquíssimo, a Vale tem uma visão de
higienizar a área, cercá-la, ter seu domínio territorial. Temos então um
processo de conflito fundiário muito intenso, no qual pequenos posseiros tentam
se manter, diante de uma empresa que quer limpá-los dali”, afirma.
Existem diversas
denúncias de aquisições ilegais de terra na região. Um levantamento
realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Canaã dos
Carajás afirma haver indícios da venda de até 199 lotes de reforma agrária na
região. A venda destes lotes é ilegal, uma vez que as terras pertencem à União,
e os agricultores que nela cultivam são apenas seus beneficiários. Em 2010, a
Vale precisou indenizar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) em R$ 6 milhões pela compra de 80 lotes de assentamento em outra área
do Pará. “A situação aqui é muito difícil, porque a Vale comprou mais de 50% do
município”, diz o presidente do sindicato, José Ribamar da Silva Costa,
referindo-se a Canaã dos Carajás.
Dentre estas
aquisições, não está o terreno de Jorge, mas não por falta de tentativas: em
2014, a Vale fez investidas para comprar a totalidade do terreno do fazendeiro.
A compra não foi efetivada, porque não alcançaram um valor que agradasse a
ambas as partes. A mineradora obteve então o direito de passar sua linha férrea
por área do produtor rural, por meio de uma ação de servidão minerária. Para
isso, no entanto, deveria indenizá-lo em R$ 450 mil, além de construir
uma passagem e a cerca que Jorge afirma nunca ter sido construída.
Levados para a
delegacia pelos seguranças da Prosegur, os fazendeiros foram encaminhados para
o hospital pelo delegado Fabrício Andrade. The Intercept Brasil não conseguiu
contatar o delegado, mas, em entrevista a uma televisão local, ele afirmou que
“houve um excesso por parte da parte patrimonial”, e que, em virtude desse
excesso, os seguranças foram indiciados por lesão corporal. Andrade disse ainda
que houve desproporcionalidade nas agressões, o que descarta a possibilidade de
legítima defesa. Segundo ele, o direito de integridade física se sobrepõe ao de
propriedade.
A tese da
desproporcionalidade é corroborada pelo advogado da família, Marcos Tavares,
que salientou ainda que a tese da Vale de invasão de propriedade é “absurda”.
“Não se faz ocupação de terra com poucas pessoas. Há todo um preparo prévio,
que simplesmente inexistiu”, afirma. Jorge também apresentou um
contra-argumento à tese da mineradora: “Como duas pessoas como nós, que
não tem muita altura nem muito físico, lutariam contra 10 pessoas armadas?”.
Questionada a este respeito, a Vale lembrou dos outros trabalhadores
presentes no reparo da cerca, que teriam se deitado no chão, e reforçou mais
uma vez que “a legítima defesa e o desforço imediato são mecanismos de defesa
previstos na legislação”.
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